02 dezembro 2012

Cabeças de peixes

Foi durante a minha infância. Família grande, páscoa. Íamos comer peixe. Eram muitos peixes. Vários tipos que vieram de diferentes tipos de água. Íamos comer peixe, carne vermelha já não se come na sexta-feira santa, porém era domingo de páscoa. Ainda assim, minha família não queria tirar a exclusividade da carne vermelha do Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós, ofereceu a própria carne em sacrifício.
Minha mãe:
_ Faz um favor, meu filho. Joga esse saco fora, pra mãe!
Minha mãe era carinhosa o tempo todo, até brigando. Uma mulher doce que adorava agradar a todos. Eu gostava de agradar a ela. Levei o saco para fora.
Sou curioso. Abri o saco. Cabeças de peixes. Nunca tinha parado para pensar. De fato não comíamos cabeças, de nenhum animal. Deixar a cabeça talvez dê um pouco de dignidade à vítima sacrificada. Eram muitas cabeças. Não consegui jogar fora.
Levei as cabeças para o meu quarto e as organizei todas em cima da mesa. Nove cabeças. Dei nome às cabeças, dei histórias de vida, prestei homenagens. Os peixes podiam sentir-se felizes, pois não comemos a cabeça, foi só o corpo. A morte foi honrada.
Nosso Senhor Jesus Cristo nos deu o seu corpo em sacrifício, mas não a sua cabeça. A cabeça de Jesus continuou viva, pois não comemos cabeças. Foi a cabeça de Jesus que reavivou seu corpo no terceiro dia.
A cabeça é difícil de digerir. Digerir histórias, digerir vivências, digerir a vida.
O tempo passou e mostrou os meus equívocos, típico do tempo. Mostrou. Minha cabeça estava pela metade quando percebi. Minhas histórias eram contadas até a metade. Minhas memórias eram fragmentos. Cabeça comida, cabeça esquecida, cabeça sem história.
Vivi a ilusão das cabeças dos peixes. Analogia equivocada. Minha cabeça tinha outro destino. O nosso senhor Jesus Cristo (agora o Vosso senhor Jesus Cristo) estava equivocado.
As cabeças de peixes. Comemos seu corpo. Minha cabeça. Comemos minha cabeça, meu corpo não. Meu corpo anda. Meu corpo sorri. Meu corpo sacode. Meu corpo fica. Meu corpo vai. Minha cabeça não. Eu só queria minha cabeça numa sacola com outras cabeças de peixes.


Leonardo Palma

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