30 abril 2012

Via úmida


Como uma cor por ser nublado se ultrapassa? E o calçamento fustigado em desnível envidraça – faz a proporção do vertical, e sua cor? E toda fresta ou fossa escavada na massa pela água, sobre si a manta reflexa d'água deita. E toda beira da pista se encharca e desliza translúcida portadora. E cada palmo de céu que se avista entre topos e toldos, se encosta duro à retina, mão gelada do tempo que abençoa a face da filha pia. Bons votos de prosperidade cedem sobre as irredutíveis figuras das calçadas molhadas, perpendiculares para sempre! De passos acentuados, duvidando a firmeza do eterno vínculo, afundam no chão impassível a planta nervosa e avançam seguros, ariscos.
Aqui para sempre essa cor e essa luz são estrangeiras. Pois aqui a fuligem recobre o asfalto onde é via (sempre há via). Ela emoldura, acompanha. Toda fachada através da parceira se acinzenta. O chão vive dentro e fora. Carbônica, a névoa paira...
Mas se nesta terra o mundo encontra outro seu estranho, e outro seu colega, e cada um dos passageiros cansados, a cor e a luz de cada um deles, sua coleção de matizes, então a composição deste outro espaço, o reflexo caído em viagem, essa temperatura dos pés, as nuances da rua e esta ausência no ar podem aqui, sim, ter lugar. Um mundo de cada vez.

Um plano: planar. A leveza é muito mais suscetível a se arrebatar. O ambiente, as esquinas do bairro de postes pintados, e descascadas pinturas, manchas escuras de cima para baixo já que a água cai.
Colado ao meio-fio o banco de madeira não obstruía mas adornava, assim como o bêbado, um pai, que sentado, com a cabeça descida sobre o peito, ressonava. Ao lado da mãe, de pé, a filha levava no rosto uma expressão crispada, sarcástica, sentida. Sem aviso pisoteia, dá um grito. Se agarra à gola da camisa do bêbado:
Acorda pai!
A cabeça pensa tende a direita, a esquerda, gira no eixo do pescoço e pousa no mesmo lugar.
Ela olha para mim. Para mim os olhos limpos e a dor não disfarçada, o olhar de fundo vermelho, a ironia dos lábios. Dissimula, exorciza. Me aquece em um ponto, e para isso se faz toda flama. Detenho-me: O leve, vê o vivo.  Arremete:
Acorda pai!
E a estocada estridente e esganiçada do som desenha o chicote do braço curto sobre a face do homem que dorme. A agressão repete, multiplica.
Uma cabeça que parece negar obstinadamente sacode-se indefesa, inconsciente. A menina, em tensão, agarra-lhe cabelos e orelha, castiga, pequenas unhas agitadas ferindo.
Meu calcanhar gelado não entende meu peito reteso. A chuva cai, me umedece. Para a menina a chuva passa despercebida. Algo emana de sua espinha vertebral, uma fonte térmica. Em sua base floresce a húbris a quem o vento e a chuva rendem respeito. Desta espinha inflamada se cria um universo que sobre o pai tomba. Retumba:
Acorda pai!
Vindo pela calçada em sentido oposto ao meu, um guarda-chuva de azul esmaecido diminui o passo, observa. Sob ele uma mulher se revela, seu olhar nada indaga. É feriado.
Na pizzaria em frente um entregador incentiva, seu abrigo impermeável reflete, o capacete na mão gesticula.
Dá nele!
Por um momento  o homem abre os olhos e fixa. Fixa, embora a direção da visão escorregue. Só pode fixar, para onde olha vê completamente, através. Apoiando o peso da cabeça no ombro, encara a filha à sua frente, sua pequena ânsia, seus olhos em brasa, límpidos, o despeito. Tenciona por as coisas no lugar, dizer que se cale, defender-se, atacar. Maldizê-la... mas embarga, e quando a água desfaz sua vontade, a vista nublada chama e a cabeça cede.
Em desespero a menina esperneia e repetidas vezes golpeia a face do pai. Com os  solavancos a cabeça solta, inerte, se precipita para um lado e depois rapidamente para o outro, atingindo um poste ao lado do banco. 
Pára Natália, cuidado!
Intervêm a voz distante da mãe, sem autoridade. O chamado não surte efeito. A menina me destina um novo olhar de ódio e espanto, o mesmo para a mulher do guarda-chuva azul. Suas mãos em frenesi passam dos tapas a um movimento de pinça que arranha a princípio, mas quer esmagar. Sob a cabeça essas mãos encontram o pescoço do bêbado que volta sua face para o céu se encontrando com a luz.
Um grito: uma ordem.
Paralisa a mãe, à mim, à mulher do olhar desinteressado. Aborta qualquer esboço de reação, nos impõe a condição de assistência.
“Perceba leve, ainda voa?”.
As gotas de chuva que caindo protegem e abrigam o furor da menina - seu calor limpo – estalam no rosto do pai, corado de bebida, de frio, de falta de ar. Os dedos finos comprimem sua traqueia. 
Pai!
Pesados, úmidos e ainda cerrados como fendas, os olhos do ébrio se abrem. Um olhar terno, primeiro. O reflexo. Um raio do branco do céu se liga à testa do homem, seus olhos se arregalam. Vejo o branco explodir, escorrer por sobre as marquises, se espaçar entre as casas. Vejo o branco que aos poucos foge para dentro de mim Seu braço desaba sobre a filha, pesado. Muito próximo, soa um trovão.


Sentado ele apóia a cabeça entre as mãos, com os nós dos dedos desfere um golpe na própria nuca. Resmunga.
No chão, uma mão pequena no rosto aplaca a  dor, contêm um nariz que sangra. A  mochila azul aberta, deixa escapar encadernações escolares.  Prostrada, ela me dirige um último olhar. Não é um pedido de ajuda. Não é um pedido de desculpas. Com a vida entre os dentes, me arremessa um riso ácido, vulgar. Agachada, a mãe recolhe seus lápis de cor,

Quanto peso carregar planador?

-Levanto vôo com um mundo nas costas, lá no alto, o mundo todo voa comigo, e já não preciso do chão.  


C. P. F. - Caio Poeta Fariseu