A lei é a do cão.
Mas...
É a do cão.
A lei é a do cão.
E ver que se atravessando a bruma há outro lado onde um dia
Não
A lei é a do cão.
E dirigir-se pra cima
olha lá o desvio
quando vimos
onde acaba?
vimos torto por
que olhos são redondos
não vimos sempre que
a lei é a do cão.
é a do cão.
é preto e branco
é clara a lei
não tropece
faixa de pedestre
o sinal! um sinal!
de que a lei é a do cão.
é a do cão.
e a bela idéia que amortece
que acolchoa a vista
e caminhemos sorrindo
olhar o futuro
as folhas caindo
outono é mudança
Não!
A lei é a do cão.
É a do cão.
Lei escrita sob a marquise
esparramada no meio-fio
sarnenta pálpebra que pisca
as moscas giram
o sol é quente
lei vazia de regra
o bote feroz do vira-lata
é quase um bote salva-vidas.
Não?
29 março 2013
Picar aio
óia
o alho?
o aio frito
fresco?
e aí?
com gergelim
assim?
na grelha?
o aio frito cai no vão da grelha
aí foi-se
meu tempeiro, em uma besteira
vou perder tempo de novo indo na feira
mas nunca será da mesma maneira
será sim, terça-feira
mas só se for noite de lua cheia
quando o aio brota da terra
quando a água brota dos oio
oxi!
é aio não cebola
mas eu ando sensível
demais
demais
demais
tanto que cortei o dedo fora
ele só apontava pra mim
a tristeza assola
mas a dor consola
e me orgulha a coragem de ter feito o que fiz
quero cortar todos os dedos
quero curar todos os anseios
quero cortar o bico dos seus seios
e quero mamar
sangue de ti
e cuspir
no chão da sua casa
me derramar até a empregada
chegar e se assustar
antes de qualquer coisa
com o meu jeito de sorrir
quero o aio que caiu ali
que a empregada lá no canto pisou
junto com o sangue que cuspi de ti
quero o tempero de seu seio
na minha ceia
antes de dormir
e acordar na cena do crime
flagrante deleite
meu nariz em seus seios quentes
com gosto de carne
bem temperada
minha amada!
brutamontes e chutes
pra que largue teu corpin
só não sou urubu
porque te matei
e tendo matado, comi
do olho ao cu, ao olho do cu com alho
não sobrou um centímetro quadrado salgado da sua pele
inteira lhe lambi
e sorri e fiz pose
e sorri pra TV
de queixo empapado, vermelho
lambi sorrindo
teus olhos
enquanto pra câmera
mandava um beijo
quanto desejo pra minha língua macia
e quanta ânsia e asco pra quem não conhece seu abraço
gostoso, mesmo morto
deliciosamente gelado
meu aio frito perdido
teu belo corpo inerte
remetem
ao feijão de minha vó
onde boiava a calabresa
a beleza
de teus movimentos e dos embutidos
e hoje de coração ferido
sempre que passo na sessão dos congelados
compro três quilos de linguiça
e choro sem cebola
a ida dos finados.
PIS dos Colibris
22 março 2013
Crianças Forjadas
E as crianças mimadas
seguem importunando suas mães
enfermas e abençoadas?
no posto de saúde, a mulher
conversa com sua doutora de sempre
e entra numa espiral de confusão e
desespero.
não consegue parar de pensar
que corre o risco de ter de se acamar; não pode.
tem três fedelhos folgados em formação,
três moleques que não
tem tempo de educar
porque
tem que trabalhar
o maridão está há três com
o seguro-desemprego que, mal entra
na renda da casa, e ele já esbanja
com algum presente pra ela, ou
pras crias dos dois,
ou no bar, com alguma gúria sem nome
que surge aqui e acolá
e as crianças forjadas
pela tv e pela rua
não se alimentam mais?
é claro que sim!
às custas do corpo da mãe, que some em meio ao asfalto
da cidade quente que morre em todo mundo
que ilude a mente, corrói o mais paciente
dos viventes serventes
à lógica demente
da qualidade de vida
e a boa vizinhança
pobreza e vigilância é o que mais se vê
alegria e temperança
se perderam no teatro da existência
(Ouço as sirenes da cidade
É o “auge” dos tempos
É o aviso de que algo está para morrer)
Zé Daniel
Alavancado de Rosário.
seguem importunando suas mães
enfermas e abençoadas?
no posto de saúde, a mulher
conversa com sua doutora de sempre
e entra numa espiral de confusão e
desespero.
não consegue parar de pensar
que corre o risco de ter de se acamar; não pode.
tem três fedelhos folgados em formação,
três moleques que não
tem tempo de educar
porque
tem que trabalhar
o maridão está há três com
o seguro-desemprego que, mal entra
na renda da casa, e ele já esbanja
com algum presente pra ela, ou
pras crias dos dois,
ou no bar, com alguma gúria sem nome
que surge aqui e acolá
e as crianças forjadas
pela tv e pela rua
não se alimentam mais?
é claro que sim!
às custas do corpo da mãe, que some em meio ao asfalto
da cidade quente que morre em todo mundo
que ilude a mente, corrói o mais paciente
dos viventes serventes
à lógica demente
da qualidade de vida
e a boa vizinhança
pobreza e vigilância é o que mais se vê
alegria e temperança
se perderam no teatro da existência
(Ouço as sirenes da cidade
É o “auge” dos tempos
É o aviso de que algo está para morrer)
Zé Daniel
Alavancado de Rosário.
21 março 2013
Rosário
Ave Maria cheia de graça
os dedos de Maria entre as contas
que chamamos de contas
ou de mistério
para não chamar de medo.
Santa Maria mãe de Deus
Rogai pela vida,
porque na morte não teremos medo.
A vida não tem segredo
e Maria ajoelhada no milho
Paga a pena da puta pega em flagrante
"Maria Puta"
"Maria Vadia"
"Eu estou rezando, e estou ouvindo,
dos três meninos, nenhum está dormindo"
"Maria Puta"
"Maria Vadia"
"Eu também quero meu corpo preservado,
Eu estou rezando..."
Maria não pediu perdão, fingiu que esse pensamento nunca lhe ocorreu.
Mas alguma culpa, lhe fez voltar para a primeira conta do rosário.
Em seguida a conta do bar, da venda, do dentista...
Calculava ajoelhada, suas contas martírio
Que esse milho vire pamonha para seus filhos
e que os filhos não virem pamonha no caminho.
Que Arturo para de roubar
Que Augusto vire padre
E Frederico um bom menino
Mas o joelho de Maria não é o joelho de Frederico.
O milho entra, o pecado sai.
O que sai de Maria, é vivo?
Se desfaz.
E os dedos seguem nas contas
e nas cordas entre as contas
os dedos de Maria
Não são as mãos bandidas de Arturo
Não são das preces apertadas de Augusto
As mãos de Maria são das contas
As mãos de Maria esperam o grosso dedo de Deus
De Jesus Cristo nosso Senhor,
esperam quem levante seu corpo velho
Seu corpo avantajado, com ombros largos e penas que não entregam a primeira vista mas içam andaimes acima de andaimes, nos edifícios da cidade.
PIS dos Colibris e Zé Seu
Em partes 2
1.
Pouca luz
Névoa
Perco
discreta
2.
viver não se planeja
3.
Falaram:
-meu caro,
solte o passo
e vá
de uma vez
desbravar o mundo!
Alargar suas marcas
seus morros
em contornos
de horizontes!
de horizontes!
4.
Família tem um tempero difícil
nó, orifício
Tabu
5.
Uma hora o óbvio cairá transpassado pelo
duvidoso
duvidoso
Em laços
luminosos,
luminosos,
ramificados
No breu
Tilinta
!
!
Faísca
Viver pode ser
sim
aurora
Sandra
Alavancado deEstive pelas últimas horas.
Minha avó não é uma gracinha
E não digo isso porque lhe tenho pouco afeto, pelo contrário, sou a única pessoa no mundo que suporta minha avó, (e nem sempre foi assim). Não se trata apenas das mal criações sem sentido, ou daquelas que infelizmente a gente entende o sentido muito bem, também não é só o fato de ela achar que pode comprar tudo com dinheiro, inclusive a dignidade de todas as pessoas. Dona Maria duvida que isso não esteja sempre à venda. O problema da minha avó está severamente próximo à maldade.
Mas antes de começar as histórias sobre minha avó, presto alguns minutos para escrever sobre ela: Uma senhora mais baixa que eu, em talvez 68 quilos, vestida de moda evangélica (mas coisa fina), e de cabelos brancos, brancos, brancos e recém cortados ( a desilusão com a religião chega uma hora ou outra) e olhos azuis de exatos 89 anos e dez meses.
O fato é que seu gênio, seu jeito, seus gestos e principalmente suas palavras, afastaram todos os familiares. Amigos? Não lembro de jamais ter conhecido algum. Os vizinhos? Colecionam histórias sobre sua crueldade e dos outros membros da família que já faleceram: Um escrivão, seu marido, meu tio, investigador de policia e meu outro tio, da aeronáutica, todos militares, tempos de ditadura... Sabem como é...
Minha avó se orgulha sempre que alguém morre, porque ela enterrou os três ( o marido e dois filhos), sem chorar. Ela não é do tipo que santifica quem morreu, para os piores pesadelos da minha mãe, ela vive a difamar seu marido e seus filhos.
Até hoje, Dona Maria não usa o telefone, porque tem raiva de telefone, porque o Romeu, o marido Romeu, colocou um telefone antes na casa da amante do que na casa deles.
Minha avó se orgulha em dizer que não casou de novo porque não quis, conta sempre uma história sobre um ‘irmão’ da igreja que foi até sua casa sozinho, quer dizer, na companhia apenas de segundas intensões, e ela não lhe atendeu. Ele insistindo, ela passou-lhe um real por de baixo da porta, pra ele pensar que ela pensou que era alguém pedindo esmolas e ir embora.
Dona Maria acredita que com sua idade pode dizer o que quiser, e diz, e bem... Até hoje ninguém nunca bateu nela. Nem quando ela aponta negros na rua para justificar como eles “não tem gosto” e porque podemos dizer que coisas feias são “coisas de pretos”. Nem quando ela diz no restaurante para a mãe de uma criança negra que “se ela tivesse um filho tão mal educado não levaria ele pra comer num restaurante e sim em uma jaula, tá faltando homem pra se fazer filho com macaco?”.
Ainda teve o dia que ela mandou de volta a encomenda de um bolo, por ter pedido sem saber que era de chocolate “ Vocês mandaram para minha casa uma negrice”. Dona Maria é tão racista que não come nem chocolate.
Para o infortúnio de minha avó, minha mãe casou com um homem negro, e mais do que isso, negro, pobre e de olhos claros como os dela. Minha avó nunca conseguiu superar que um negro também pudesse ter olhos claros. Com essa história de casamento minha avó só praguejou, e reclamou. Enquanto minha mãe roubava pão com carne de casa para o meu pai, enquanto minha mãe roubava pão com carne da ditadura militar para alimentar meu pai, “neguinho”, “trombadinha”, “delinquente” e preso político.
Minha avó continuou a reclamar e praguejar, enquanto meu pai fazia mestrado doutorado e criava suas filhas. Hoje quando meu pai me leva para casa da minha avó, em um carro caro, minha avó diz “ Ele é um bom preto, poderia ter se casado com uma negrinha bonitinha”.
Eu nasci branca, mas minha irmã não. Então minha avó diz que me suporta porque não puxei a negrice da família, fiquei só com sua parte italiana (Ah! a ilusão!), mas já minha irmã que é morena não é da família, porque não tem a ‘genética branca’
Me fiz cega, muda e surda, porque minha avó esta ficando cada vez mais debilitada, esclerosada, caquética e surda, mesmo. Ela precisa de alguém, de mim. Não culpo minha mãe por não ter forças, minha avó não tem o mínimo de respeito, de filtros, de consideração. Minha mãe trabalha muito, está sempre cheia de problemas, por sorte ela tem um atual companheiro muito legal, que é um grande homem. Minha avó nunca o chamou pelo nome, nunca o respeitou, é o “motorista do carro vermelho” (Aliás ela não chama ninguém que não goste pelo nome).
Cada vez mais esclerosada, as implicâncias começam a fazer menos sentido, assim fica mais fácil eu suportar calada, ontem ela não quis comer o chuchu porque se parecia com calcanhar de Aquiles. Ela sempre reclama da comida, e sempre deixa resto no prato pra dizer que estava ruim, guarda restos horrorosos até apodrecer para me mostrar que a comida estava um lixo. Depois ela vai até o restaurante e pergunta se o cozinheiro ganha mal.
Recebe uma boa aposentadoria, mas é trambiqueira, vive trocando de faxineiras e sempre quer pagar menos e humilhar mais. Uma vez, uma faxineira de confiança, que já ia na sua casa há alguns anos, teve um derrame, minha avó assistiu sentadinha, e não fez nada, até um pedreiro que passava ouvir gritos e socorrer a mulher. Até hoje minha avo lamenta que o pedreiro manchou uma de suas toalhas com sangue da faxineira. A moça obviamente nunca mais passou perto da casa da minha avó, que diz não entender porque a faxineira sumiu e mais, que ela deveria lhe oferecer uma faxina pela toalha que estragou.
Odeio quando ela me faz rir com alguma maldade, mas às vezes, simplesmente, não aguento. Passamos muito tempo juntas, impossível não se criar algum afeto, e eu tenho uma terrível mania de me apegar a pessoas horríveis, quanto pior melhor. Minha avó me maltrata, me pisa, deita e rola. Quando precisa de algo, de algum favor, ela sempre quer me convencer porque seria bom pra mim ajuda-la, me oferece dinheiro, nunca tem humildade pra pedir.
Um dia demorei 20min para faze-la assumir que ela queria que eu lesse, por favor, para ela, um bilhete do biscoito chinês. Dizia que ela deveria ser mais doce. Demorei um bom tempo tentando explicar o que isso significava, ela me fez até ler o verbete “doce” no dicionário, quando concluímos que ela deveria ser uma pessoa mais amorosa ela ficou em silencio, por infinitos segundos, e depois disse “ Dessa vez o bilhete não serviu pra mim”. O bilhete que antes ela tinha dado tanto valor, Oh, oh! A sabedoria oriental.
Minha avó acha que eu tenho um dom, e diferentemente da minha família que não aguenta mais me ouvir cantar, ela pede que eu cante enquanto lavo a louça, o fogão, o chão, as escadas, por dentro dos canos, da privada, os cantos mais escondidos e empoeirados, é foda, porque em casa nunca fiz nada disso, porque fico com pena de deixar minha avó, minha pobre avozinha na sujeira? Mesmo quando eu sei que ela mesma sujou descaradamente para me mandar limpar? Porque? E ainda me manda fazer tudo cantando, eu faço, eu lavo, eu passo, cantando.
Eu faço tudo para minha avó, tudo pela minha avó. Não sei mais porque, antes não era assim, quando ela não precisava de mim, mas ela está tão sozinha, e precisa tanto! Quando fui viajar, fiquei sabendo que minha mãe foi visita-la e ela gritou e chorou, desesperadamente, feito criança, foi extremamente agressiva e violenta com minha mãe, por ela ter me deixado ir pra tão longe, sozinha, por ela ter tirado da minha avó a única coisa que ela tinha.
Se minha avó soubesse do apuro que eu estava passando na Europa nessa dia... É, só ela estava preocupada...
Hoje tocamos violão juntas ( eu na mãe esquerda, ela só com a direita, batendo as cordas), Saímos para comer, assistimos filmes, escolhemos flores e objetos novos para casa, fazemos unha e cabelo juntas, toda semana e ouço ela reclamar sobre tudo, e falar mal de todas as pessoas que não são como ela, de todas as pessoas que não são ela nem eu. Peço sempre para ela não falar da vida dos outros, pelo menos não tão alto. Peço sempre pra ela respeitar negros índios e japoneses, mas sinto que essa batalha está perdida.
Detesto pensar em quando vou perder minha avó, sendo que durante quase todos os anos de minha vida, quando eu tocava sua campainha e ela demorava para atender, eu sonhava para que ela estivesse morta, e mais, sonhava em levar para minha casa seus moveis belle époque. Um filme se passava pela minha cabeça, quanto mais ela demorava para atender mais eu vibrava, imaginando a partilha dos móveis, cortinas e tapetes.
t
Eu precisei crescer para ser capaz de perdoar a minha avó, talvez pareça incompreensível, eu não sei como se parece de fora, mas hoje eu a vejo tão fraca, tão senhora.
Dona Maria, por que você não é doce como a avozinha da novela? Por que não é como as senhoras dos comerciais de margarina? Avózinha do céu, por que você não é uma gracinha? Posso julgar alguém por te odiar? Sou pior por gostar de você?
Mas antes de começar as histórias sobre minha avó, presto alguns minutos para escrever sobre ela: Uma senhora mais baixa que eu, em talvez 68 quilos, vestida de moda evangélica (mas coisa fina), e de cabelos brancos, brancos, brancos e recém cortados ( a desilusão com a religião chega uma hora ou outra) e olhos azuis de exatos 89 anos e dez meses.
O fato é que seu gênio, seu jeito, seus gestos e principalmente suas palavras, afastaram todos os familiares. Amigos? Não lembro de jamais ter conhecido algum. Os vizinhos? Colecionam histórias sobre sua crueldade e dos outros membros da família que já faleceram: Um escrivão, seu marido, meu tio, investigador de policia e meu outro tio, da aeronáutica, todos militares, tempos de ditadura... Sabem como é...
Minha avó se orgulha sempre que alguém morre, porque ela enterrou os três ( o marido e dois filhos), sem chorar. Ela não é do tipo que santifica quem morreu, para os piores pesadelos da minha mãe, ela vive a difamar seu marido e seus filhos.
Até hoje, Dona Maria não usa o telefone, porque tem raiva de telefone, porque o Romeu, o marido Romeu, colocou um telefone antes na casa da amante do que na casa deles.
Minha avó se orgulha em dizer que não casou de novo porque não quis, conta sempre uma história sobre um ‘irmão’ da igreja que foi até sua casa sozinho, quer dizer, na companhia apenas de segundas intensões, e ela não lhe atendeu. Ele insistindo, ela passou-lhe um real por de baixo da porta, pra ele pensar que ela pensou que era alguém pedindo esmolas e ir embora.
Dona Maria acredita que com sua idade pode dizer o que quiser, e diz, e bem... Até hoje ninguém nunca bateu nela. Nem quando ela aponta negros na rua para justificar como eles “não tem gosto” e porque podemos dizer que coisas feias são “coisas de pretos”. Nem quando ela diz no restaurante para a mãe de uma criança negra que “se ela tivesse um filho tão mal educado não levaria ele pra comer num restaurante e sim em uma jaula, tá faltando homem pra se fazer filho com macaco?”.
Ainda teve o dia que ela mandou de volta a encomenda de um bolo, por ter pedido sem saber que era de chocolate “ Vocês mandaram para minha casa uma negrice”. Dona Maria é tão racista que não come nem chocolate.
Para o infortúnio de minha avó, minha mãe casou com um homem negro, e mais do que isso, negro, pobre e de olhos claros como os dela. Minha avó nunca conseguiu superar que um negro também pudesse ter olhos claros. Com essa história de casamento minha avó só praguejou, e reclamou. Enquanto minha mãe roubava pão com carne de casa para o meu pai, enquanto minha mãe roubava pão com carne da ditadura militar para alimentar meu pai, “neguinho”, “trombadinha”, “delinquente” e preso político.
Minha avó continuou a reclamar e praguejar, enquanto meu pai fazia mestrado doutorado e criava suas filhas. Hoje quando meu pai me leva para casa da minha avó, em um carro caro, minha avó diz “ Ele é um bom preto, poderia ter se casado com uma negrinha bonitinha”.
Eu nasci branca, mas minha irmã não. Então minha avó diz que me suporta porque não puxei a negrice da família, fiquei só com sua parte italiana (Ah! a ilusão!), mas já minha irmã que é morena não é da família, porque não tem a ‘genética branca’
Me fiz cega, muda e surda, porque minha avó esta ficando cada vez mais debilitada, esclerosada, caquética e surda, mesmo. Ela precisa de alguém, de mim. Não culpo minha mãe por não ter forças, minha avó não tem o mínimo de respeito, de filtros, de consideração. Minha mãe trabalha muito, está sempre cheia de problemas, por sorte ela tem um atual companheiro muito legal, que é um grande homem. Minha avó nunca o chamou pelo nome, nunca o respeitou, é o “motorista do carro vermelho” (Aliás ela não chama ninguém que não goste pelo nome).
Cada vez mais esclerosada, as implicâncias começam a fazer menos sentido, assim fica mais fácil eu suportar calada, ontem ela não quis comer o chuchu porque se parecia com calcanhar de Aquiles. Ela sempre reclama da comida, e sempre deixa resto no prato pra dizer que estava ruim, guarda restos horrorosos até apodrecer para me mostrar que a comida estava um lixo. Depois ela vai até o restaurante e pergunta se o cozinheiro ganha mal.
Recebe uma boa aposentadoria, mas é trambiqueira, vive trocando de faxineiras e sempre quer pagar menos e humilhar mais. Uma vez, uma faxineira de confiança, que já ia na sua casa há alguns anos, teve um derrame, minha avó assistiu sentadinha, e não fez nada, até um pedreiro que passava ouvir gritos e socorrer a mulher. Até hoje minha avo lamenta que o pedreiro manchou uma de suas toalhas com sangue da faxineira. A moça obviamente nunca mais passou perto da casa da minha avó, que diz não entender porque a faxineira sumiu e mais, que ela deveria lhe oferecer uma faxina pela toalha que estragou.
Odeio quando ela me faz rir com alguma maldade, mas às vezes, simplesmente, não aguento. Passamos muito tempo juntas, impossível não se criar algum afeto, e eu tenho uma terrível mania de me apegar a pessoas horríveis, quanto pior melhor. Minha avó me maltrata, me pisa, deita e rola. Quando precisa de algo, de algum favor, ela sempre quer me convencer porque seria bom pra mim ajuda-la, me oferece dinheiro, nunca tem humildade pra pedir.
Um dia demorei 20min para faze-la assumir que ela queria que eu lesse, por favor, para ela, um bilhete do biscoito chinês. Dizia que ela deveria ser mais doce. Demorei um bom tempo tentando explicar o que isso significava, ela me fez até ler o verbete “doce” no dicionário, quando concluímos que ela deveria ser uma pessoa mais amorosa ela ficou em silencio, por infinitos segundos, e depois disse “ Dessa vez o bilhete não serviu pra mim”. O bilhete que antes ela tinha dado tanto valor, Oh, oh! A sabedoria oriental.
Minha avó acha que eu tenho um dom, e diferentemente da minha família que não aguenta mais me ouvir cantar, ela pede que eu cante enquanto lavo a louça, o fogão, o chão, as escadas, por dentro dos canos, da privada, os cantos mais escondidos e empoeirados, é foda, porque em casa nunca fiz nada disso, porque fico com pena de deixar minha avó, minha pobre avozinha na sujeira? Mesmo quando eu sei que ela mesma sujou descaradamente para me mandar limpar? Porque? E ainda me manda fazer tudo cantando, eu faço, eu lavo, eu passo, cantando.
Eu faço tudo para minha avó, tudo pela minha avó. Não sei mais porque, antes não era assim, quando ela não precisava de mim, mas ela está tão sozinha, e precisa tanto! Quando fui viajar, fiquei sabendo que minha mãe foi visita-la e ela gritou e chorou, desesperadamente, feito criança, foi extremamente agressiva e violenta com minha mãe, por ela ter me deixado ir pra tão longe, sozinha, por ela ter tirado da minha avó a única coisa que ela tinha.
Se minha avó soubesse do apuro que eu estava passando na Europa nessa dia... É, só ela estava preocupada...
Hoje tocamos violão juntas ( eu na mãe esquerda, ela só com a direita, batendo as cordas), Saímos para comer, assistimos filmes, escolhemos flores e objetos novos para casa, fazemos unha e cabelo juntas, toda semana e ouço ela reclamar sobre tudo, e falar mal de todas as pessoas que não são como ela, de todas as pessoas que não são ela nem eu. Peço sempre para ela não falar da vida dos outros, pelo menos não tão alto. Peço sempre pra ela respeitar negros índios e japoneses, mas sinto que essa batalha está perdida.
Detesto pensar em quando vou perder minha avó, sendo que durante quase todos os anos de minha vida, quando eu tocava sua campainha e ela demorava para atender, eu sonhava para que ela estivesse morta, e mais, sonhava em levar para minha casa seus moveis belle époque. Um filme se passava pela minha cabeça, quanto mais ela demorava para atender mais eu vibrava, imaginando a partilha dos móveis, cortinas e tapetes.
t
Eu precisei crescer para ser capaz de perdoar a minha avó, talvez pareça incompreensível, eu não sei como se parece de fora, mas hoje eu a vejo tão fraca, tão senhora.
Dona Maria, por que você não é doce como a avozinha da novela? Por que não é como as senhoras dos comerciais de margarina? Avózinha do céu, por que você não é uma gracinha? Posso julgar alguém por te odiar? Sou pior por gostar de você?
Tico-Tico
Alavancado de: texto sem título
Texto sem título
Olha ca, eu sei que tudo estava tão ruim
algumas horas de conversa ou papo repetido me sufocavam
mas, saiba que voltavamos todos os dias seguintes
porque te amavamos
te amamos.
voce era infeliz.
sempre pensei que fora uma escolha
No fim, considerei ser tudo somente a vida.
Agora, que voce foi embora
e eu choro um pouco todas as noites
eu sinto , eu sei
Voce foi boa
muito mais que infeliz, voce amou.
Lembro dos batons e colares
dos tropecos em seus sapatos
desfilando pelo corredor.
As cancoes inventadas perto da poltrona verde
e a sua voz
me apresentando aos presentes
sentados muito alem da parede
todos invisiveis a aplaudir
a nossa sintonia
os seus gritos e rugidos
seus engasgos insistentes
o carro sufocado pelo perfume
os jantares desagradaveis
seus preconceitos evidentes
sua estupidez
tudo tao ridiculo e pequeno
esmagado por quem você realmente foi
A velha infeliz
sorri ao ver meu retrato
e diz:
"Boa noite, Vitoria".
algumas horas de conversa ou papo repetido me sufocavam
mas, saiba que voltavamos todos os dias seguintes
porque te amavamos
te amamos.
voce era infeliz.
sempre pensei que fora uma escolha
No fim, considerei ser tudo somente a vida.
Agora, que voce foi embora
e eu choro um pouco todas as noites
eu sinto , eu sei
Voce foi boa
muito mais que infeliz, voce amou.
Lembro dos batons e colares
dos tropecos em seus sapatos
desfilando pelo corredor.
As cancoes inventadas perto da poltrona verde
e a sua voz
me apresentando aos presentes
sentados muito alem da parede
todos invisiveis a aplaudir
a nossa sintonia
os seus gritos e rugidos
seus engasgos insistentes
o carro sufocado pelo perfume
os jantares desagradaveis
seus preconceitos evidentes
sua estupidez
tudo tao ridiculo e pequeno
esmagado por quem você realmente foi
A velha infeliz
sorri ao ver meu retrato
e diz:
"Boa noite, Vitoria".
Vitoria Teivelis
Alavancado de Estive pelas últimas horas.
17 março 2013
11 março 2013
La Morocha
Lo invité a mi
departamento recién alquilado, ya teníamos un tiempo separados. Aún
no había muebles, entonces puse un lienzo en el piso, llene de
pétalos de flores, pero no todo el piso que era el de la planta
baja, no alcanzan las flores, eran pocas. Puse unas velas rodeando el
cuadrado que había decido convertir en altar, coloque fotos en el
piso, porque repito, no había muebles, seis fotos rodeando el
lienzo, fotos de nosotros, en blanco y negro, de nuestro pasado, de
nuestro amor pasado?
Tenía
dos cervezas coronas en la pileta de la cocina, porque aún no tenía
heladera, las puse ahí para que les caiga agua del caño y las
mantenga lo más frías posibles, mala idea haber comprado cervezas,
el clima no iba a dar para brindar…
Tocaron
la puerta. Era él. Todo raro, nervioso, distante, como enojado. Por
mi parte invadida de nervios, nervios y más nervios. Me había
dejado en claro que no quería revivir el pasado y fue exactamente lo
que hice. Decidí grabar todos los mensajes de textos lindos, y en la
misma grabación yo hablaba un poco del contexto del mensaje, por las
dudas a él se le haya olvidado. Duro media hora. Los nervios me
comían, el no entendía nada. Yo me fui hasta la escalera y busque
aquello que era el objetivo de la noche, dentro de una cajita roja, y
se lo di: “casate conmigo”. Empezamos a llorar. Después
palabras, silencios, reproches, el evadía, demoraba la respuesta…
hasta que ese monosílabo se estampo en mi oído provocando una
sordera temporal: no gorda.
Flavia Rodriguez
6. Decálogo
- Consiste em escrever um conto sobre um dos dez mandamentos da mitologia Judaico-Cristã. No subtítulo deve estar escrito o mandamento correspondente ao texto.
- 1º - Adorar a Deus e amá-l'O sobre todas as coisas.
- 2º - Não invocar o Santo Nome de Deus em vão.
- 3º - Guardar domingos e festas de guarda.
- 4º - Honrar pai e mãe (e os outros legítimos superiores).
- 5º - Não matar (nem causar outro dano, no corpo ou na alma, a si mesmo ou ao próximo).
- 6º - Guardar castidade nas palavras e nas obras.
- 7º - Não furtar (nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo).
- 8º - Não levantar falsos testemunhos.
- 9º - Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos.
- 10º- Não cobiçar as coisas alheias.
não tema
não tema
ponha trema em u
e não leia linguiça
não tenha
não tema
não trema
na linguiça
é só um bom churrasco
das tripas coração
mostarda molha as entranhas
e uma estranha sensação
enche a boca
molha o pano e agrada aos dedos
segurar na mão.
molha a pele de gordura
animal, a carne
Segura este pescoço
sem combros concentra
todo esse sangue na
cabeça careca e, por favor,
não morda
não aperta
com calma você acerta
e come com toda fome
que queria matar
sem pressa nem vacilo,
não trema na linguiça
é com conselho, afinal,
conselho que é bom não se dá,
se come com gosto!
CNH do Sabiá (pra passarinho pilotar pipa)
09 março 2013
Tridimensionice
Na superfície do que digo há um castelo. No topo da mais alta de suas torres há uma misteriosa mudança de direção apontando para três lados de um mesmo problema ornamental. Em torno deste castelo há um fosso, e tudo na superfície do que digo é também fosso, de forma que caminhar por aqui é também afundar, e no fundo do fosso há outro castelo, uma mudança de direção, e um fosso sem fim.
O portão do castelo do que digo tem barras fortes, lado a lado, e por entre os vãos se vê aquilo que não digo. Eu digo barras.
Toda vegetação que cresce no que digo se nutre de limo e fungo. Faz tempo que só digo a mesma coisa. Nas copas das árvores, balançam minhas omissões. Só sei que são tantas quando as vejo acumuladas no chão. É outono em minha boca. Digo com o vento palavras de deixar ir, que tudo afunda, menos o castelo das palavras, barras, vãos, a mudança de direção, ir embora. Onde fica embora?
No que digo tudo é oco. Não parta as peças de meu cenário, não visite os alojamentos desse castelo, não circule aqui à noite. É quando estou calado.
Mas se vier, seja bem-vindo.
No que digo não há importância. Já houve. Acabou. Tirei isto daqui. Fazia mal a todos.
Venha para o que eu digo! É um parque temático. Você visita tudo de uma vez. Há um castelo onde moram três irmãs, três irmãos, bananeiras, estórias de ônibus lotados, reticências, muitas! Uma comunidade. Um olhar engajado em fazer castelos, que mora em uma grande casa ao lado da edícula das coisas duras de se dizer, quase sempre fechada.
Divirta-se! Mas não tropece e caia, você já está caindo. Não seja redundante. Relaxe.
A cor do céu aqui depende do dia em que você me deu as costas. Se ainda não deu, o céu é da cor de sua expectativa.
Não lembro de tudo que digo. É muita coisa. Muito detalhe inútil. E ainda assim, o que digo não pesa, quase não se vê, esse vazio danado em todo canto, quando foi que disse isso?
Quero que diga o que eu digo. Você fala bem. Tenho certeza que meu castelo em sua boca diria menos problemas, e esse vazio que emoldura sua úvula, pintado com o suco de mil enigmas, aquela dor de garganta, a tosse que me cospe o fosso. Não vai engolir?
Você diz minha mudança de direção,
minha mudança de direção,
minha mudança de direção.
Do jeito que você fala é andar em círculos. Minha mudança de direção. O que eu digo vai convergir? Com o quê?
- Não me diga para ficar quieto.
Convergindo te digo. Se é acidente, ou comunhão.
C. P .F. - Caio Poeta Fariseu
Alavancado de Aqui a história é indireta
08 março 2013
Já que isso não começa
Já que isso não começa
com a peça do canto
do meio me despeço
buscando encanto
atras de encosto para um tanto,
em tantas vezes
que encosto em qualquer canto
declinei a cabeça sobre
a peça e lembrei
de um pedido, que me custou a beça
Mas deixei meu ombro servir
de cano para outro tanto,E de repente, ombro era galo cantando
No meio da minha testa,
esta que te apresento
em quebra cabeça
em quebra cabeça
de peças mudas
que nunca encontram o encaixe das curvas
a cabeça no ombro
minha mão na sua perna esquerda
de coxas nuas
Eu não consigo não te cantar
Eu não consigo não te cantar
como estou triste nessa manhã
É só chorar chuva de clichê,
e cachê terá muito como cantora.
Mais do que como michê na rua Aurora com sua mãe?
E não brinque com minha poesia,
E não brinque com minha poesia,
Porque ela escorre por esse guardanapo
como gozo escorre no saco
como sangue escorre dos olhos.
CNH do Sabiá ( para passarinho pilotar pipa)
07 março 2013
Estive pelas últimas horas.
Estive pelas últimas horas.
Tinha prometido que seria eu outra identidade,
Mas de novo escrevo sobre efeito da mesma embriaguez de insatisfação.
Eu estou tomada,
e na boca, o gosto é amargo.
Eu sinto que estou indo embora
com os ponteiros na parede,
Mas eu não, eu não vou voltar.
eu sei que ainda não vou voltar.
Pergunte aos ponteiros por onde andei.
Pergunte ao pó sobre minhas pegadas.
Tinha prometido que seria eu outra identidade,
Mas de novo escrevo sobre efeito da mesma embriaguez de insatisfação.
Eu estou tomada,
e na boca, o gosto é amargo.
Eu sinto que estou indo embora
com os ponteiros na parede,
Mas eu não, eu não vou voltar.
eu sei que ainda não vou voltar.
Pergunte aos ponteiros por onde andei.
Pergunte ao pó sobre minhas pegadas.
Tico-Tico
Alavancado de : Cortejo do Divino
06 março 2013
homens e rios encanados
as formações
me interessam
enquanto o tempo
estriado
da cidade
pulsa
e estamos nós
em suas mãos
enquanto meu corpo
estirado
na calçada
sabe
é sempre tempo
de se achar
onde houver
corpo
copo
chão
se descansa
onde não
há cabeça
e que se saiba a tempo
onde ficam esconderijos
de volta a ronda noturna
retornelos se fazem mais precisos
que
cada som modulante
modulado
calado
seja
vívido e só
ouvido
na cidade
nossa incapacidade
inata
enquanto a gente se relata
das ruas e rios asfaltados
é o coração que
sublima
chove
transborda
enquanto a gente se retrata
meu amor
me mata
Alavancado de Aqui a história é indireta
me interessam
enquanto o tempo
estriado
da cidade
pulsa
e estamos nós
em suas mãos
enquanto meu corpo
estirado
na calçada
sabe
é sempre tempo
de se achar
onde houver
corpo
copo
chão
se descansa
onde não
há cabeça
e que se saiba a tempo
onde ficam esconderijos
de volta a ronda noturna
retornelos se fazem mais precisos
que
cada som modulante
modulado
calado
seja
vívido e só
ouvido
na cidade
nossa incapacidade
inata
enquanto a gente se relata
das ruas e rios asfaltados
é o coração que
sublima
chove
transborda
enquanto a gente se retrata
meu amor
me mata
Marcondes
Alavancado de Aqui a história é indireta
Cortejo do divino
Eu diria que ultrapassei a fronteira com 10 malucos na mala
Expondo intimidades
Em vão
Em vão
Diria que desperdicei tempo
E nem sequer me dediquei aos clássicos
Desconheço os Russos, a imensa China
Eu menti
Para economizar drama
Fiquei só
roendo unha, roendo unha
roendo unha, roendo unha
Diria que o medo é a ausência do outro
São as histórias avermelhadas,
lacradas
de Nélida Piñon
Eu diria que nisso não há alívio
Nem descanso, nem serviço
Não há pausa ou ofício
E mesmo sem compreender certos indícios
Arrisco gestos
e os nomeio
Paixão
Arrisco gestos
e os nomeio
Paixão
Alavancado de Preciso de Alguém
Sandra
A verdade sobre todas as coisas - 8º: não levantar falso testemunho
I
A
cidade corre como seu todos os dias, numa naturalidade que amedrontaria um
tanto aos olhares mais atentos. Como num balé, multidões inidentificáveis e
eternamente condenadas ao atraso, passeiam em suas sincronias às pressas, seus
engarrafamentos, afogamentos de superlotação no transporte público. Nos
estabelecimentos, onde a circulação intensa cede espaço ao salgado engordurado
e café, ou cerveja, ou pinga, ou refrigerante dietético, ou ainda nas
residências cansadas do longo dia, ou nos caminhos lotados dessas residências,
ou pelos bolsos em seus aparelhos digitais, chegam por telas eternamente acesas
as atualizações da beleza na cidade, as vidas das pessoas famosas da cidade, as
notícias da violência da própria cidade; em toda a cidade, chegam notícias da
cidade; aos belos e grandiosos, aos violentos e aos violentados, chegam
notícias dos famosos, da beleza e da violência na cidade. E a essas notícias, o
pânico. O pânico de frequentar a rua, fora da pressa sufocada das horas
comercias (há uma bolsa de investimento e especulação das horas mais lucrativas
dos dias); o pânico de desesperadamente encontrar uma semelhança entre si e a
beleza; o pânico de alguma forma fazer parte de sua grandiosidade. E a essas
notícias belas, grandiosas, famosas e violentas, e ao pânico, a boa justificativa
para mais violência, sobretudo essas notícias violentas, que emprestam à
violência os status de bela, famosa e grandiosa, e porque tudo que chega das
telas, se chega pelas telas, só pode ser uma versão purificada da verdade. E às
telas, tudo se refere, não só porque seja onipresente, mas principalmente, por
sua onisciência. Há câmeras por toda parte, seja na missão de flagrar e
deflagrar a violência, seja na missão de divulgar belezas, famas e grandiosos
costumes; todos estão sujeitos não só a receber as notícias da cidade, mas
principalmente a voluntariosamente, ceder novas notícias a seu panteão
vertiginoso e efêmero. A cidade soa assim plena em sua normalidade, onde cada
qual desfila seu cotidiano rotineiro, a certeza das câmeras para flagrar seus momentos
e das telas para divulga-los, com a aparência convertida em gesto, e
comprovando em seus gestos gravados, as verdades que gostaria de mostrar ao
mundo: pelas telas, a vida na cidade afirma sua verdade.
II
O
homem negro de terno entra sisudo no vagão; procura um assento e, olhando em
volta, se depara com um grupo das garotas em roupas mínimas, cabelos alisados e
gestos bastante expansivos. Ele que carrega um livro de capa de couro preta
embaixo dos braços, ao se deparar com as garotas, que o olham com certo
despeito, segura mais forte o livro e desloca seu olhar, atravessa as telas,
procurando assento do outro lado do vagão. Ao sentar percebe estar perto de um
casal homossexual; as telas captam o momento em que olha para as mãos dadas dos
dois homens e se surpreende. Já era tarde: não poderia voltar a se levantar,
sem levantar as suspeitas de quais eram suas razões; teria de lidar com a
presença imoral e a conduta antinatural daqueles sujeitos, e que diabos dos
infernos que esse mundo está perdido mesmo, se vê por esse vagão, que não tem
um canto sem sordidez. Da mesma forma, o casal homossexual percebe a presença
daquele homem negro de terno, logo a seu lado. Supõe: um preto de terno ou é
segurança ou é crente; mais uma vez as telas capturam a expressão de
curiosidade e desdém de seus rostos no momento exato em que ambos analisam o
homem de cima abaixo. Ao perceberem a convicção com que o homem negro de terno
se agarra ao seu livro de capa de couro preta, percebem de imediato: trata-se
se um fanático religioso ignorante e homofóbico, isso se não for um pastor
ladrão. As telas, então, formam um quadro de desconforto mútuo no primeiro
momento de viagem, que se desfaz numa cortina entre a cordialidade e a presença
tolerada.
No
entanto havia ainda outro empecilho de urbanidade a se levar em conta. Sabiam
da presença das câmeras. Não que houvesse alguma polícia ou coisa que o valha
para que lhes ordenar como deveriam agir. Aquele homem negro de terno agarrado
com afinco a seu livro de capa de couro preto era livre para agir segundo sua
própria disposição; no entanto, sabia, como todos os demais, que sua atitude
era acompanhada pelo olhar mecânico das câmeras e tida como exemplo diante das
telas; trata-se de afirmar para os seus, que fique claro, segundo sua atitude,
a coerência de sua fé: seu desafio era reprova-los, em seus gestos, com uma
sutileza que evitasse que essa reprovação pudesse servir de justificativa para
uma resposta por parte do casal homossexual. Da parte do casal homossexual ocorria
algo muito parecido: toda a indignação de uma comunidade deliberadamente
atacada de maneira atroz pelas as ultimas declarações de religiosos
obscurantistas, poderia estar acompanhando a situação, afinal era evidente que
aquele homem os mirava com todo o preconceito. Da mesma forma, não queriam se
rebaixar ao nível desses sujeitos ignorantes, bárbaros ofensivos contra os
direitos e a liberdade individual.
As
telas mostram o casal homossexual, de maneira altiva, trocando carícias leves.
Aquelas carícias tinham a representatividade de uma bandeira multicolorida, e
era esse o espírito de sua atitude: carregavam com carinhos, ora bolas, mesmo
que mais por raiva que por afeto, o orgulho de sua luta, numa batalha
silenciosa e ostensiva, num gesto que imaginava ter de um lado a sua comunidade
ofendida como plateia, e de outro, o escárnio descarado sobre o preconceito. As
telas mostram que a troca de carícias do casal homossexual gerava no homem
negro de terno um desconforto enorme: a cabeça fazia suaves gestos de negativa,
enquanto sua testa aos poucos ia minando suor, as mãos agarraram-se à ao livro
de capa de couro preto e sua respiração ofegante, ficava cada vez forte. É que
o homem internamente, ainda apenas diante si e de seu Deus, orava; orava
rogando ao espírito santo que livre aqueles dois homens do fogo do inferno pela
prática da sodomia, que os cure dessa prática doentia, e principalmente, que
livre a ele e aos seus daquele espetáculo pecaminoso que se apresentava em
pleno vagão e se difundia sabe Deus para onde e para as vistas de que crianças
inocentes por meio dessas telas.
A
respiração ofegante do homem negro de terno soava para o casal homossexual como
uma provocação, a declaração de seu incômodo diante de sua simples presença. As
telas mostram o casal homossexual entre carícias leves, observando o homem
negro de terno com suas negativas suaves com a cabeça, e os olhos fechados
enquanto ora. Então, um dos dois homens apoia-se sobre o colo do outro,
ostentando mais claramente nas telas sua posição de casal. O suor do homem
negro de terno aumenta drasticamente, tomando não só a sua testa em largas
gotas, como empapando sua camisa na região do peito; não era apenas o
constrangimento que lhe causara o suadouro, como pelo próprio clima quente, em
vapores que emanavam do vagão. Tanto era assim que mesmo o casal homossexual,
ao se manterem um no colo do outro começavam também a suar de maneira bastante
incômoda; no entanto, não se levantariam: sua posição tinha algo além do
simples conforto momentâneo; havia ali uma proposição política. E é bem verdade
também que não apenas o calor fazia com que o casal suasse, mas também o
nervosismo gerado pela expectativa da situação. Afinal, iria o homem negro de
terno, seu oponente ocasional, levar às últimas consequências a peleja? O homem
negro de terno ao perceber que o casal homossexual parecia muito mais à
vontade, inspirados pelo demônio, de certo, abriu seu livro de capa de couro
preto e começo também a orar de maneira ostensiva, repetindo as palavras do
livro como quem resmunga algo, em dizeres um tanto confusos, mas deixando claro
que estavam sendo ditos: um espetáculo de fé, e que fosse fonte de inspiração
para a moral de toda a cristandade que o acompanhava pelas telas, aquele homem,
que como um profeta, enfrentava com dizeres santos a provocação diabólica.
Estava
agora declarada guerra. Por um lado, um casal de homens um no colo do outro, e
por outro, um homem negro de terno lendo em voz alta e imperiosa e eis que hoje eu ponho diante de vós a
bênção e a maldição, ainda que de maneira confusa, seu livro sagrado de
capa de couro preto. O clima tenso estava declarado, e se notava espalhado mesmo
para o resto do vagão; eles se encaram os três, suando em bicas, e as telas
fixavam a imagem de um homem negro de terno pregando com mais eloquência que fé,
para um casal homossexual que, assistia ao discurso com um sobre o outro numa
certa ternura forçada.
À
medida que a tensão se torna evidente, o homem negro de terno aumenta seu tom
de voz em gestos cada vez maiores. Não só pelas telas se vê o embate de
convicções e modos de vida, como pelo resto do vagão, a situação ganha todo
foco; dada sua circunstância espetacular, nenhum dos lados abriria mão da
peleja. E quando o homem negro de terno já se encontra à beira dos berros, se não cumprires o mandamento do vosso
senhor, o casal homossexual dá um beijo enorme, quente, úmido, cheio de
línguas e suspiros.
Nesse
momento, o trem para na estação; dois meninos maltrapilhos, com umas camisetas
de candidato político, chinelos de dedo entre dedos pretos de sujeira, algumas
cicatrizes, e um acordeom que um deles carrega nos braços. Enquanto um começa a
tocar, o outro pede licença aos passageiros, que nós não queremos incomodar os
senhores, só mostrar um pouco do nosso trabalho e pedir sua ajuda que Deus os
abençoe. Todos se calam diante de sua singeleza; o vagão inteiro é tomado, não
pela pena desses pobres meninos pobres, precisamos mesmo dar uma colaboração de
bom grado, mas a música se alastra por todos os cantos como uma chama de outra
natureza; o beijo e a pregação se interrompem contemplativos daquela cena: um
toca, o outro canta e passa uma cuia para as moedas. A comoção no vagão era
tamanha que quase todos deram a sua contribuição, afinal mesmo que pouco, é de
coração e esses meninos bem merecem. As
telas mostram os meninos tocando e arrecadando moedas e sorrisos pelo vagão;
mostra o casal homossexual boquiaberto; mostra o homem negro de terno com os olhos
marejados: algo naqueles meninos lembrava a ele próprio, em suas meninezas, e
esse tipo de calor emocional, câmera nenhuma pode ser capaz de captar.
Então,
com os olhos ao ponto do pranto, o homem negro de terno retirou sua carteira
simples do bolso, esvazio-a por completo e depositou tudo na cuia dos meninos
maltrapilhos. O menino maltrapilho que carregava a cuia, ao ver a quantia que o
homem negro de terno depositava ali, agradeceu acaloradamente com um sorriso
largo como a plataforma e um abraço forte. As telas mostram o abraço, mas não teriam
condições de expressar o que se presenciava; mostravam o casal homossexual se
olhando diante do homem negro de terno.
Mais
uma vez o trem para na estação; e da estação, sobem seguranças da companhia de
trens que afinal, viram pelas telas e cena comovente e ilegal. Abruptos, tomam
a cuia dos meninos maltrapilhos, tomam seu acordeom e vão retirando do vagão as
crianças, que já não choram mais nessas situações. Um dos homens do casal
homossexual se levanta: esse é trabalho deles, seu troglodita, fascista! E o
segurança: esse é o meu. Trabalho inglório o dele, servicinho de merda; e esse
pensamento pairava sobre as cabeças de todos no vagão, com o trem partindo mais
uma vez da estação.
Então
o silêncio tomou o vagão; ouvia-se apenas o rangido metálico dos trilhos se
roçando junto do trem, enquanto todos pensavam naqueles meninos e tomara Deus,
não tenha lhes acontecido nada demais, apenas uma bronca e deixem, por favor,
eles irem com o dinheiro e o acordeom. O casal homossexual olhava para baixo,
ambos pensando nas lágrimas que hesitaram em cair por aquele rosto negro e
humilde, que deu sem pestanejar tudo o que tinha, e num gesto tão sincero e
espontâneo, tão diferente daquele discurso enfadonho e eloquente, coreografado,
que fazia antes a chegada dos meninos maltrapilhos. E o homem negro de terno
não voltou a olhar o casal homossexual, porque tinha vergonha de ver não o
demônio se levantando na tentativa de proteger as crianças, mas um humano dos
mais nobres, enraivecido diante de uma injustiça evidente, dando voz à vontade
de todos os presentes. Eles se admiravam; por um momento, quase quiseram trocar
sorrisos. Mas se viram nas telas, calados, com os olhares fugitivos uns dos
outros, e se lembraram de que eram ali representantes de algo que ia além deles
mesmo: o preconceito e a verdade que deveriam sustentar.
Não
se olharam, não oraram, não se acariciaram. Passaram o resto da viagem como desconhecidos,
os três. Num silêncio que era de uma devoção, de uma quietude toda dedicada a
suas presenças; um silêncio de homenagem velada.
Na
estação seguinte o casal homossexual desceu, sem olhar para trás. O trem
seguiu.
Jurandir Dente d'ouro.
Decálogo.
Assinar:
Postagens (Atom)