29 outubro 2012

Concreto & Vidro

Gosto de espairecer,
Ir ao centro e perambular
Pra sentir o cheiro do lixo jogado nas ruas
E dos trapos dos mendigos
Que mal me percebem –
A não ser pelo trocadinho que,
Para eles, sai de qualquer bolso
Que cruze seus caminhos

Observar os rapazes e as meninas
Que saem dos prédios cheios de escritórios:
Marmanjos com seus óculos escuros
Pendurados no topo de suas cabeças sem sonhos
E garotas com caras cansadas em seus vestidos que
Não lhes cabem mais e
As moscas que circulam seus corpos
Como às almas de qualquer outro

Os prédios que não se constroem mais
Com imaginação,
Apenas toneladas de concreto e vidro
Aglomerados para dar forma a espaços
Trancados em que caibam
O máximo de vidas sem graça possível

As ruas e os carros, abarrotados
As árvores e a água, paradas
A gente e a cerveja, mornas
Jogados ali aqui e acolá
Sem cor, sem dor trabalhada,
Sem graça

Zé Daniel

Antes do sol acordar

Hoje o Edmilson acordou sabendo que algo ia mudar. Vamos tratá-lo por Ed, pois assim ele prefere. Essas duas letras trazem mais intimidade e descaracteriza a origem humilde de seu nome, como ele mesmo diz.
“Algo vai mudar”, foi o que disse. “Disse” como maneira de dizer, disse para si mesmo internamente. Digo disse, pois é mais próximo do acontecido do que se eu tivesse dito “pensou”.
O sol ainda não tinha saído, não eram nem seis horas, mas ele já estava se preparando para a viagem rumo ao seu trabalho, cheio de dizeres internos de mudança.
Pegou o ônibus às 6h10, sempre pontual para o seu percurso diário de uma hora e quarenta minutos de duração. Cartão sempre batido às 8hs em ponto, “pontualidade britânica”, era o que dizia, sem saber muito o que isso significava.
No meio do trajeto tomou uma decisão, logo ele que não possuía muita experiência em decisões. Ficou feliz pelo momento único de sua vida. Agora que tomara a decisão sentia ter controle de algo, apesar de não saber do quê.
Desceu do ônibus no ponto seguinte e em menos de cinco minutos descobrira a complexidade das decisões. Decidira descer do ônibus e agora que desceu se sentiu forçado a tomar outra decisão. Sentiu uma profunda angústia, pois tinha deduzido que uma decisão puxa a outra e agora que havia tomado uma decisão, ficou na dúvida se havia feito a coisa certa. Não sabia se queria passar o resto de sua vida tomando decisões. O ônibus partiu, era tarde. Ed havia se tornado um decididor. Ele respirou fundo e disse internamente para si mesmo que se tornar coisas fazia parte das mudanças.
Tomou outra decisão, caminhar sem rumo, sem saber para onde e o porquê. Caminhar para ver, para olhar o mundo. Ganhou mais um título que nunca havia possuído, sequer soubera da existência. Agora era um decididor-caminhante-visionário.
Olhou para o mundo com o olhar virgem de alguém que nunca tinha visto antes. Caminhou por lugares que suas pernas não-caminhantes nunca usufruíram. Não fez outra coisa nas próximas horas, era todo caminhar e ver.
Sentiu fome, sentou na calçada e abriu a sua marmita de arroz, feijão e bife. Comeu fria. Na verdade, após algumas horas dentro da mochila, debaixo de trinta e quatro graus, seria mais próximo da realidade arredondar a temperatura da sua comida para quente.
Tomou outra decisão, comer e sentir o gosto da comida. Sentiu. Sentiu o gosto, sentiu o bafo quente de um dia de verão, sentiu suas pernas latejarem, sentiu as cores dos anúncios publicitários, sentiu os sons, sentiu a cidade. Agora também era um sentimentalista.
Voltou a exercer sua função de caminhante visionário, porém, com a sofisticada habilidade de sentir. Caminhava sem rumo, cheio de dizeres internos para si mesmo. Tentava explicar para si o que eram essas mudanças. Sentia vontade de racionalizar aquilo, de transformar em palavras-pensamento o que via com os olhos, decidia com a intuição, caminhava com as pernas e sentia com a alma. Tornou-se um racionalista.
Parecia um jogo. Agora tudo tentava transformar em palavras-pensamento, as cores das luzes do semáforo, a sensação quente dos raios de sol na sua pele, os ruídos dos automóveis, o movimento das folhas das árvores, o não-movimento dos prédios, as pessoas. Parou nas pessoas. Como racionalizar as pessoas? Começou um novo jogo: olhar para uma pessoa e imaginar a vida dela até aquele exato momento. Era um imaginador agora.
Imaginou centenas de vidas, centenas de histórias, centenas de mudanças. Parou nas pessoas, esbarrou nas vidas. Sentiu vontade de voltar para casa e assim o fez. Imaginar vidas foi mais exaustivo do que havia suposto, algo pesado. Pesado por dentro, pois comparava as vidas imaginadas com a dele próprio.
Chegando em casa, todos estavam preocupados. Ligaram do trabalho. “Onde você estava?” Ele ensaiou contar o que havia acontecido, mas parou. Viu aquelas pessoas com seu novo olhar visionário. Sentiu aquelas pessoas como um sentimentalista. Caminhou em volta delas, caminhante que era. Imaginou não a vida que tiveram até ali, pois dessa já sabia, imaginou a vida que poderiam ter tido. Racionalizou. Tomou a última decisão do dia: dar uma desculpa qualquer e ir dormir, mesmo porque, no dia seguinte acordaria antes do sol.


Leonardo Palma

28 outubro 2012

Um dia do outro

Um dia do outro,
outro-dia.
Depoisd'outro
dia
outro
vem
trivial.
Vacila outro
faz contorno, visa
tropeça à frente
aqui
dentro
tal
Distorce roto
habita, pisa
consta
e a reta e a vista a mira a morte a vida baixa a rima
que mera brisa minha
a sorte...
Meu consorte
respira!

E a cilada
é ouro é pleura é posse
fugidia
que o ouro
muito em pouco
já é outro
dissidente
começo.
C. P. F. - Caio Poeta Fariseu