04 junho 2012

Caravelas 2.0 - (em processo)


Que buzina é essa que aponta longe? Será a Dutra? Aonde estará a Dutra? Quanto dista daqui?. A buzina me intriga. É instável, aqui o som dos carros não forma um ruído uniforme. Não me sinto seguro na geografia do som. Quero me localizar, não controlo o impulso de me localizar. As paredes são amareladas, e ainda seriam amareladas sem esta luz incandescente. Há uma uniformidade de tons. Amarelados. Do chão de tacos, ao rodapé, um criado-mudo de madeira escura, uma pequena mesa com uma cadeira de encosto alto e um guarda-roupa, com uma única porta, todos de madeira, a colcha das duas camas de solteiro. Amarelados. São amarelados pois fazem parte deste espaço, onde há uma unidade. Este amarelo os une. Sou a parte não-amarela deste quarto. A parte que se move. Todo resto está unido contra mim. Não falei da cortina. Está mais para laranja. Compõe com o quarto. De forma transversal se cria uma ambientação. Desagradável. Também não falei da única peça ornamental, a coroa do desenho, a reprodução de uma xilogravura onde se vê uma igreja de estilo colonial e uma pequena cidade. Há muitas assim. É um retrato bucólico, isto é um lugar. Aqui nesta cidade me sinto em lugar algum. Vou me sentir melhor quando dormir. São os sons. Com o tempo o amarelo entra em mim, se ficasse mais um dia aqui já seria amarelo e estaria tudo bem. Aceitaria talvez estas manchas da parede como minhas, não iria ficar imaginando a história de cada uma. Mas com os sons não posso. Preciso entender o que estou ouvindo. Preciso encontrar este ritmo. São buzinas de caminhão, agora tenho certeza, já sei até mesmo que passam com intervalos de cinco a dez minutos, às vezes menos, e não há como, me dá um sobressalto, sinto o caminhão entrando pela janela, e parece que de nada adianta esta cortina laranja. É tarde. Já passou da uma. Meus olhos estão um pouco inchados. E tem isso. Não sei. É mais fácil de escutar do banheiro pela janelinha, tento ficar do lado esquerdo para que não possam me ver da janela do corredor. Pensei que fosse para mim. Quando cheguei aqui parecia que todos os sons me diziam respeito, aos poucos essa sensação foi passando. Não sei. Não dá pra entender muito bem o que a voz diz, tenho que me levantar na ponta dos pés, e virar o ouvido para o vão da janelinha. Tenho medo de que a sombra da minha cabeça apareça lá fora. No vão do prédio. A voz parece irritada. Não escuto ninguém lhe respondendo. Está falando no telefone. Acho que está falando no telefone. Há um espaço entre uma frase e outra. Um espaço no som. Definitivamente ela não fala sobre mim. Se subo no degrau da porta do box, posso ficar mais alto, escuto melhor. É uma discussão. Vou abaixar, vou abaixar a TV, vou me abrir para este descampado baldio do som. Pronto. As buzinas, o escapamento das motos. Pessoas longe, quase sem relevo. O clique do meu isqueiro. Em intervalos a voz. Joguei uma camada de silêncio sobre o prédio. Tenho medo que escutem meu silêncio. Prestam atenção a você todo o tempo. Estou construindo este espaço. A forma mais fácil de me enxergar nele. Vivo em relação a alguém. Sozinho não sei. O chão do banheiro é feito de pedaços irregulares de azulejo vermelho-carmim. Há a intenção de desenhar uma flor, acho, com pedaços de azulejo amarelo, quatro pedaços para cada flor. Mas talvez não sejam flores. Os azulejos da parede são brancos e vão do chão até a altura de meus olhos. Uma estreita faixa de azulejo azul divide a parede horizontalmente. Na parte de cima não há azulejos. Ainda aqui há algo amarelado, o chão do box é feito de ladrilhos coloridos. É a voz de um homem. Ele está brigando com alguém. Quer que lhe dêem uma chance. Não sei. Ele diz que precisa sair daqui, agora, que fez tudo por ela – agora sei, ele fala com uma mulher – e que ela devia, uma única vez , fazer algo por ele, é tudo que ele pede. Não sei. Eu diria que ele está foragido da polícia, ele está acuado, já sabem que ele está aqui, ele precisa sair, é questão de tempo até o pegarem. Ele fala com sua namorada – ela está em outra cidade - precisa pegar o carro do pai e vir para cá, vir pela Dutra, precisa salvá-lo, vão capturá-lo, a polícia, e os homens da máfia, todos eles, cautela, ele está devendo. Sim. É onde toda a decadência se reúne, uma narrativa característica, o chuveiro de metal de modelo pré-histórico, a corrente enferrujada que serve de cordinha para a privada, o ritmo dos acontecimentos. Estou em algum lugar. Um lugar hostil. Não o escuto, não entendo as palavras. A intenção é clara, forte. Ele está correndo perigo. A pessoa que está na linha parece também estar nervosa. Ele tenta falar baixo, para não chamar a atenção. Acho que neste fosso há apenas as nossas janelas. Agora que não entendo mais o que diz a voz, sinto falta do som da TV. Se não a entendo é como se estivesse sozinho. O chão do banheiro está molhado. Ele fala com longas pausas, que parecem respiros. Tenho a impressão de que já não fala mais com uma mulher. Terá feito outra ligação? Fala com outras pessoas, está nervoso, ninguém o responde. No meio, plástica, escura, opaca, destoa a porta do box. No amarelo, o box é o estranhamento. Se for pegar a blusa no quarto talvez não volte. Seguro os pensamentos e a respiração, estou escutando, até a brasa. Ele diz: “Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e você não pode uma única vez, uma única vez! Eu nunca te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única vez!” Um instante. O silêncio lá embaixo me impõe uma dupla camada de vazio, aqui. Vamos silenciar...

A VOZ - “Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e você não pode uma única vez, uma única vez! Eu nunca te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única vez!” (longo silêncio. Ele pigarreia. Aquece a voz. Modulando a entonação)“Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e você não pode...”

Sei onde estou. Estou onde tudo um dia foi amarelado, onde os móveis de madeira, as manchas na parede, o cheiro forte de cigarro, fizeram parte do espaço e quase que de mim. Estou onde algo foi e tento agora estar assim, equivocado, onde os móveis, as manchas e o cheiro, despidos me sorriem. Alguém bate na porta. E já nem me sinto mais sozinho.

C. P. F. - Caio Poeta Fariseu


Resulta de Caravelas.

02 junho 2012

Ubatuba Bitch's 



E era lá no litoral, tá ligado?Eu era moleque, 12 anos. A gente vivia lá no Perequê-Açú, Ubatuba, pá.
E aí então véi, liga essa fita. A gente passava uns bagulho, tá ligado? Passava geral, pra fazê uma preza pro sustento da família e pá.
Era eu e a Fernanda na função. Ela era mais velha, tinha uns 15 ano na época, mas nem porque nóis era pivete o bagulho amenizava. O barato era lôco, e nóis inda que tenro e tal, vendia tudo, passava geral: maconha, farinha, crack, o carái a quatro, e num tinha quem folgasse, pois nem que num guentando, já empunhava cano, manjando um tanto inté, de fazê mira nos pedrão da praia.
E foi por essas data que descolamo um esquema do carái pra trafica a grande porte. Começamo a passa farinha prum bangalô - puteiro, tá ligado? - lá na beira da prainha, vinte minuto do Perequê-açu.
E o barato era lôco irmão, cê num tem idéia. Nóis negociava direto com a madame, a Cleide, dona do bangalô, cheia da grana. Meio velha, já nem fazia programa, mas cherava que só a desgraça. Só ela, quatro, cinco papel numa noite. Vaporetto, nóis chamava.
E tu imagina eu irmão! Moleque no meio da putaiada, em tempos de punheta acanhada, já gozava na cara de vagabunda.
E o quê? Tu duvida? Nada maluco, meu respeito ficava de espreita no criado mudo, um 38 na carga , que num levava na cintura pois, pivete que era, me arriava a bermuda. Mas era. E nem só por isso! As puta tava tudo na minha mão: precoce abastecedor do meretrício praiêro. Cheravam meu pó e chupavam meu pau mirrado, por uns teco na lambuja, preza minha por prazer.
Eu falo e tu num ganha a lança, que parece até inverdade de minha parte, mas é real. Nóis fazia o crime nos preceito, e naquela mamata, era só arrecadar. E dava grana, dava grana que tu num bota fé. Tinha semana que nóis fazia dois, três quilo de pó, só naquele pico. As bruaca se acabando de cherá, os cliente se acabando, e os garçom, faxinero, todo mundo! Quem tinha nariz, narigava. A carranca arisca de revendedor ressabiado dexamo de lado pra sorrir satisfeitos, e arrecadar, arrecadar, arrecadar.
Minha mãe que trampava de copeira à beira-mar, festejava de geladeira nova e até um carango barganhado no desmanche. O pó era a finança, e não se temia rodar. Nóis era criança e, fosse o caso, nem dois mês na jaula era, imunidade de pivete, que nem político.
E o bagulho foi que foi. O lucro era ascendente, as mocréia descabelava; pó do bom que prende, que dá vontade de repetir.
A Cleide depois de um tempo já tava arregaçada. Perdeu o controle geral. Em vez de administrar, cherava. Em vez de dormir, cherava, em vez de comer, cherava. Da boca imunda da cafetina já num saía mais odor de porra velha - tanta rola já passara por ali - era só o bafo vicioso de farinha que escapava, que lhe fedia o corpo inteiro, cadavérica, modorrenta, consumida a coroa que era só o pó. Meu pó.
E já era tanto que o montante do ganho do prostíbulo, num cobria o gasto com a farinha. A Cleide devia. E foi devendo mais, devendo pra carái!
E cê tá ligado, né irmão? No esquema num tem Serasa, num tem arrêgo pra viciado vacilão. A Cleide era firmeza, mas aí, negócio é negócio truta, e o pó que nóis passava era veneno cobrado à grama na bocada. Sem desconto,sem abrando, a fatura chega rasgando, atraso é desfeita que se cobra sem complacência; inadimplência com o morro é erro sem perdão.
Seis pau véi! Seis mil reais, tu concebe? Quantia a dá com pau, dinheiro pra carái, mano. E a Cleide tinha a grana? Tinha porra nenhuma. Tinha mais nada. Mas tinha que pagar, e nóis tava lá de credor pra evitar mal entendido, engano, equívoco, engambelação de toda monta, cano numa mão na outra a conta, a carapuça do carrasco minha bombeta véia vermelha.
Aí que no mocó sitiado a madame abriu as perna, e pra sustá o valor nos dedicou o bangalô de mão beijada.
Nossa irmão! A fita é sério, tô zuando não. No registro num constava, pois nem dava, já se viu adolescente de puteiro proprietário? Mas a bagaça caminhava no acordo do nosso mando. Que suave soava: "Chefinho, farinha pra Mômô?", "Chefinho, a taxa do senhor", "Chefinho, carinho no pirú?". E só era, a Fê na calculadora, empilhando os lucro, no que eu curtindo a de patrão na poltrona do comando, os pé balançando, que nem chegava no chão.
C'os coxinha tudo sussa, a Cleide mantinha os arranjo, pagava a permuta pra num prende nossas puta por vadiagem. E se viessem embaçá pelo pó (nosso pró nas venda fazia inveja nos milico) tudo no acerto, pré-pronta a correria. Três muleque lá da vila vigiava as rua de acesso ao bangalô. Barca que passasse, no aceso ou na surdina, estalava céu lá em cima, três salva de caramuru 12 tiro, como se fosse gol do Peixe. Então, nóis já ligado na vinda da lei, se escapava do bangalô por trás, a cocaína nas mochila, e num pique já no cais, nossa rota de fuga marinha. Bote? Porra nenhuma. O esquema era responsa. Nóis ia era de jet-ski cortando o mar à noite. Voando co'a coca nas costa - coxinha, nem me viu! Só o vento na cara, o nariz escorrendo de frio, chapado, ensopado, rindo pra porra dessa sina insensata, desse mundo infantil. 
22/05/2007

C. P. F. - Caio Poeta Fariseu