12 julho 2011

Tétrica culinária

Corta!
É o fim do dia. Nem uma gota mais de azeite. O impulso é pular a bancada, arrancar pela porta, descer deslizando as escadas destes andares pestilentos e alcançar a rua. Com um visível desconforto tira o jaleco de alvura impecável desabotoando as mangas cortadas à justeza de seus pulsos. No colarinho se acumula a base que pretendera dissimular o suor vinagrete de Pierre. Seus sapatos ninguém duvida que fiquem invisíveis às câmeras sob a mesa, mas não há argumento que dissuada o diretor, por isso seus pés de unhas cultivadas sofrem todos os dias horas de asfixia durante a gravação.
Pronto! Está livre. O pensamento que aconselhava uma fuga imediata continua a circundar sua mente:
"Não aspire tolices, Pierre Boyé, bem sabes da dor de teu flanco, aquela queda no pólo dominical. Não pula, não corres, nem rebolas, est un garçon estropié!"
No passo suave de suas alpercatas italianas - conforto, ah, je merrreço! - deixa o chef aquele antro de patetas audiovisuais. Despede-se das camareiras - de Marlene também, com quem não falava a dias - do ascensorista e do porteiro - un garçon très bigodudo - e, lamentando a enorme extensão do estacionamento subterrâneo, acelera e sai ao volante (o auto acompanha sua lamúria em roncados baixos de desalento).
A noite paulistana reflete-se nos vidros de seu veículo sem abalar por um segundo que seja o devaneio do esteta: "Pepinos, rabanetes e caralhos cozidos! Querro a font du sabour da vide! Non televisón ni batates recheades! Je anxie le absolut, le total, le prrrato fundamentél!"
As idéias de Pierre seguem o fluxo, se enfileiram entre os prédios do Brooklin na orla da Marginal apinhada por onde tenta em vão trafegar. Sob seus olhos o anúncio do novo condomínio transfigura  uma imagem amorfa, um indício: "É belo, mas não vejo les ingrredients! Ó mirragem que me enfastia!"
Através da dúzia de metros que o separa do outdoor, cruza toda sua ambição e frustração desviando dos   carros de passeio, caminhonetes, motoboys, do carbono semi-permeável e dos guard rails, escalando alpercatas brancas na graxa da escada, lambendo o painel. O pincel do gourmet  parece uma língua.
- Que mérde de congestionament!
Sem  que avançasse mais de um metro pela via, desiludido, interrompeu a ingestão suicida de antidepressivos,  -  A última, je non support! - quando avistou na margem do leito negro do rio algo que lhe capturou a atenção.
- Voilá!
Em formas esguias se destacava sob as lâmpadas incandescentes um grande e belo fungo. Firme, sobre a boca de um esgoto torrente.
Pierre, sem pensar, desceu do carro, saltou o guard rail e avançou através do mato alto ao som das buzinas e de seus alteregos. O barro de tom enegrecido cobriu seus pés até o tornozelo.
- Esperre por mim!
Ninguém via, mas seu suor pingava pouco fotogenicamente. Depois da parte mais funda do lamaçal, eram apenas poucos metros. O cogumelo de superfície oleosa desprendia um odor espesso e tomava já toda a visão de Pierre. Três, quatro metros de circunferência, o matiz enrubescido dos fungos dos campos de Nantes. Era um tesouro.
- É meu!
As mãos ávidas de Pierre não se continham, o previsível aconteceu. A um toque estabanado do grande chef desprendeu-se com facilidade - não havia raízes, brotara de um sonho - o cogumelo alcançou as densas águas do Pinheiros.
- Champignom!
Gritou Pierre enquanto ele se afastava.
- Champignom!
Chorou. A noite comia seu ingrediente proibido. Estava feio e triste.

C.P.F. - Caio Poeta Fariseu





Alavancado de Receita do Reino Fungi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário