09 janeiro 2013

Primeira parte


        Ao contrário do que indicariam as mais básicas cartilhas não começarei a introduzir minha pessoa através de um nome qualquer. Na verdade darei inicio à tudo confessando um estranho costume que possuo. Você há de reconhecer ser no mínimo inusitada esta disposição de lhe revelar assim, logo de cara, aquilo que tantos julgam ser um grande defeito. Para diminuir o estranhamento e justificar esta facilidade explico que os acontecimentos que pretendo narrar exigem muito da minha franqueza. 
          O fato é que me alongo demais observando a tudo neste mundo, acabo um ser distante, calado demais. Me comporto como uma estrangeira incapaz de compreender falas, gestos. É quando levo a mão ao queixo e depois a deslizo pelo pescoço, detendo-a na garganta num movimento em que os dedos vem e vão, como uma massagem. Este é o  indício mais comum de que acredito ter passado o ponto de dizer qualquer coisa. Tal habito sempre causou irritação aos parentes, bem como em qualquer um que me acompanhe. Em minha defesa explico se tratar de uma força que envolve práticas antigas, fruto de uma infância gasta em longas pausas, solitárias. Dentre elas retomo como cenário a fazenda onde era possível percorrer longos pastos  e plantações estando sempre atenta aos buracos de saúvas.
         Lembro o fascínio que me causou ver pela primeira vez um enxame de Iças!  Parecem pequenos besouros e chegam formando uma nuvem negra.  Gastávamos litros de veneno no chão da fazenda. Era uma guerra perdida impedi-las de perfurar a terra e formar novos formigueiros, mas tentávamos.  Na intuito de amenizar os danos eu mesma matei centenas, esmagando-as contra a terra.
            (...)
            Parte desta historia começa em uma festa às seis horas da manhã. Estava encostada em uma parede porque nunca gostei de dançar. Com uma das mãos massageando o pescoço comecei a observar a dança dos outros. Se davam as costas, divididos em pequenas rodas. Porque não organizam um único circulo? Talvez todo ser urbano, se ordinário, já tenha se dado conta dos aspectos atrativos do anonimato! Fixei o olhar em uma moça. Como descrever? (...) Chamou minha atenção a expressão de seu rosto, era como um retrato preto e branco, daqueles que promovem ícones antigos, como Greta Garbo. Isso porque ela mirava algo longínquo, além do presente. Aparentava estar distante daquela sala neon, onde seu corpo guiado por um ritmo duro, eletrônico, respondia feito maquina. O olhar fixo às luzes no teto, presa ao desvelar de tantos outros mistérios possíveis.
        Acho bom esclarecer, não sou o tipo de gente que se esforça inutilmente em controlar os acontecimentos indecifráveis da vida,  mas procuro não poupar esforços quando se tratam das brincadeiras do espírito. Talvez por isso a simples existência daquela moça tenha me levado a acreditar que seu olhar portava um propósito, uma mensagem. Era preciso, portanto, registrar este momento e sua devida importância para esta história.
        Amanheceu no centro de São Paulo e os raios alaranjados da manhã adentraram a  festa. Fiquei aliviada pela nitidez proporcionada pela claridade. Decidi mudar de ambiente, fumar um cigarro na varanda. Acompanhar o dia nascer diante de uma paisagem célebre de São Paulo, o cruzamento da Avenida Ipiranga com a Avenida São João. Aqueles prédios antigos me causam estranhamento: o padrão arquitetônico não parece pertencer mais à esta cidade, é um recorte. Hoje os arranha céus com janelas espelhadas também geram estranhamento, mas por outros motivos. Os prédios do velho centro lembram aquele filme, "Janela indiscreta". Como se a realidade vivida atrás de cada janela aparentasse ser uma película colada ao interior dos buracos.  Assim, cenas matinais começavam a despontar em rápidas narrativas.
             Um homem vestido com um macacão jardineira surgiu na varanda, do outro lado da rua. Colheu algumas roupas do varal e se recolheu. "Este é meu suspeito!", pensei. Outro homem, desta vez alguns andares acima, saiu com um uma xícara na mão, encostou-se na grade e sorriu. 
           Foi diante dos prédios, do cigarro, do concreto e do falso suspeito que senti brotar um impulso, uma necessidade berrante de algo inexistente em minha compreensão, talvez neste mundo. Estava um pouco bêbada, confesso. Inquieta, resolvi descer à rua. O sol já havia esquentado o asfalto mas os comércios permaneceriam fechados, era feriado e portanto não lotariam as ruas como de costume. Em dias como esse é possível dizer que São Paulo ainda é capaz de  guardar remotamente os ares de uma cidade interiorana, embora as ruas da República sejam imundas e possuam um cheiro característico de lixo e mijo. Avistei as sacadas da festa em que estava à pouco, lá as pessoas ainda gritavam, bebiam e fumavam. Na calçada abaixo do prédio havia se formado um acampamento de mendigos, cercados por colchões manchados, jornais, cobertores velhos, garrafas plásticas, caixas de papelão, cachorros, sarna... Sobre eles caíram e ainda caiam algumas sobras da festa. Latinhas, bitucas, fitas verdes e vermelhas, até uma máscara...Apesar da chuva de objetos e do calor severo todos dormiam profundamente com os rostos projetados para cima, as bocas abertas eram buracos expostos por onde entravam e saiam moscas...aparentavam vida pois respiravam, mas a máscara...era uma caveira de Ensor, que coincidência tenebrosa.
          Para esclarecer a natureza desconcertante desta imagem é preciso dizer que hoje se faz necessário lutar contra melancolia como quem luta contra um enxame de iças. As  mazelas tem a forma de formigueiros antigos, com suas centenas de bocas e labirintos subterrâneos. É necessário pontuar e entender para amenizar os danos. Desacelerar este estado de constante ataque cardia e ansiedade desmedida que nos empobrece e faz adoecer. É a cansativa tarefa de permanecer atento para não ser incompleto na superficialidade, mas não tão atento a ponto de se deixar abater. Trata-se de ser feliz, é isso! Basta ser leve, dizem. 
              Mas não, isso não funciona.
             Me causa desconforto a rasa dualidade com a qual se compreende a vida. A leveza em prol da felicidade. É preciso eliminar o "versus", a disputa diante da qual a morte vem a ser um estado negativo, assim como o peso.  A morte simplificada à feiura e degenerescência. No entanto é preciso rir da morte se possível. Rir como riem as caveiras, compreendendo a naturalidade desta condenação universal. Somos frágeis, duraremos pouco e esta lanterna* que nos ilumina a razão se apagará a qualquer dia. Deixaremos de ver as luzes tingindo as nuvens de laranja, mas até lá tantos ainda verão repetidas e repetidas vezes o pôr do sol  que muitos deles passarão como um espetáculo sem nota, sem registro.      
            Por isso a necessidade de ser estrangeira e tentar fotografar tudo. E quando digo fotografar não me refiro ao gesto mecânico, faço referência à contemplação, ao desenho mental. Tentarei explicar. 

(...)

Sandra Mazzini
Alavancado de Humanos...

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