26 maio 2012

Caravelas


CONTEMPLADOR 1 -  Que buzina é essa que aponta longe? Será a Dutra? Aonde estará a Dutra? Quanto dista daqui?

CONTEMPLADOR 2 - De que lhe vale este dado? Esteja.

CONTEMPLADOR 1 - Estou. Mas a buzina me intriga. É instável, o som dos carros não forma um ruído uniforme aqui. Não me sinto seguro na geografia do som.

CONTEMPLADOR 2 - Então não se sente seguro.

CONTEMPLADOR 1 - Quero me localizar, não controlo o impulso de me localizar.

CONTEMPLADOR 2 - Onde você está?

CONTEMPLADOR 1 - Em um quarto de hotel, no interior. As paredes são amareladas, e ainda seriam amareladas sem esta luz incandescente. Há uma uniformidade de tons, amarelados, do chão de tacos, ao rodapé, um criado-mudo de madeira, uma pequena mesa com uma cadeira de encosto alto, de madeira. Um guarda-roupa, com uma única porta, a colcha das duas camas de solteiro.

CONTEMPLADOR 2 - O chão de tacos e os móveis de madeira são de cor escura e não...

CONTEMPLADOR 1 - Amarelados. São amarelados pois fazem parte deste espaço, onde há uma unidade. Este amarelo os une. Sou a parte não-amarela deste quarto. A parte que se move. Todo resto está contra mim.

CONTEMPLADOR 2 - Apodere-se.

CONTEMPLADOR 1 - Não falei da cortina. Está mais para laranja. Compõe com o quarto. Uma ambientação transversal. Deveras desagradável. Também não falei da única peça ornamental, a coroa do desenho, a reprodução de uma xilogravura onde se vê uma igreja de estilo colonial e uma pequena cidade.
CONTEMPLADOR 2 - A cidade onde você está.

CONTEMPLADOR 1 - Não sei, há muitas assim. É um retrato bucólico, isto é um lugar. Aqui nesta cidade me sinto em lugar algum.

CONTEMPLADOR 2 - Mas você está em algum lugar.

CONTEMPLADOR 1 - Vou me sentir melhor quando dormir, para o sonho há sempre volta. 

CONTEMPLADOR 2 - Não está se esforçando. Está vendo realmente as coisas? O que pergunta para o espaço? Por que não espera a sua resposta?


CONTEMPLADOR 1 - São os sons. Com o tempo o amarelo entraria em mim, se dormisse mais um dia aqui já seria amarelo e estaria tudo bem. Aceitaria talvez estas manchas da parede como minhas, não iria ficar imaginando a história de cada uma. Mas com os sons não posso. Preciso entender o que estou ouvindo. Preciso encontrar este ritmo. São buzinas de caminhão, agora tenho certeza, já sei até mesmo que passam com intervalos de cinco a dez minutos, às vezes menos, e não há como, me dá um sobressalto, sinto o caminhão entrando pela janela, derrapando no meu colchão.

CONTEMPLADOR 2 - E a voz?

CONTEMPLADOR 1 - E tem isso. Não sei. É mais fácil de escutar do banheiro pela janelinha, mas tento ficar do lado esquerdo para que não possam me ver da janela do corredor.

CONTEMPLADOR 2 - O que ela diz?

CONTEMPLADOR 1 - Pensei que fosse para mim. Quando cheguei aqui parecia que todos os sons me diziam respeito, aos poucos essa sensação foi passando.

CONTEMPLADOR 2 - Você está encontrando a segurança...

CONTEMPLADOR 1 - Não sei. Não dá pra entender muito bem o que a voz diz, tenho que me levantar na ponta dos pés, e virar o ouvido para o vão da janelinha. Tenho medo de que a sombra da minha cabeça apareça lá fora.

CONTEMPLADOR 2 - No vão do prédio?

CONTEMPLADOR 1 - No vão do prédio. A voz parece irritada. Não escuto ninguém lhe respondendo. Está falando no telefone. Acho que está falando no telefone. Há um espaço entre uma frase e outra. Um espaço no som.

CONTEMPLADOR 2 - Você está procurando o alheamento. Componha.

CONTEMPLADOR 1 - Definitivamente ela não fala sobre mim. Se subo no degrau da porta do box, posso ficar mais alto, escuto melhor. É uma discussão.

CONTEMPLADOR 2 - Vai ouvir melhor se abaixar o volume da TV.

CONTEMPLADOR 1 - Vou abaixar, vamos ver este descampado do som. Pronto. As buzinas, o escapamento das motos. Pessoas longe, quase sem relevo. O clique do meu isqueiro. Em intervalos a voz. Joguei uma camada de silêncio sobre o prédio. Tenho medo que escutem meu silêncio.

CONTEMPLADOR 2 - Achas que prestam atenção em você todo o tempo.

CONTEMPLADOR 1 - Estou construindo este espaço. É a forma mais fácil de me enxergar nele.

CONTEMPLADOR 2 - Sendo algo para os outros?

CONTEMPLADOR 1 - Vivo em relação a alguém.

CONTEMPLADOR 2 - Você está sozinho.

CONTEMPLADOR 1 - Sozinho não sei ser. 

CONTEMPLADOR 2 - Este quarto existe para além de você, lembra-se? As manchas na parede não são suas.

CONTEMPLADOR 1 - O chão do banheiro é feito de pedaços irregulares de azulejo vermelho-carmim. Há a intenção de desenhar uma flor, acho, com pedaços de azulejo amarelo, quatro pedaços para cada flor. Mas talvez não sejam flores. Os azulejos da parede são brancos e vão do chão até a altura de meus olhos. Uma estreita faixa de azulejo azul divide a parede horizontalmente. Na parte superior a essa faixa não há azulejos. Ainda aqui há algo amarelado, o chão do box é feito de ladrilhos coloridos.

CONTEMPLADOR 2 - Escute.

CONTEMPLADOR 1 - Pensei que vir para cá fosse como entrar no mato, nesta cidade piso em falso.

CONTEMPLADOR 2 - Escute a voz.

CONTEMPLADOR 1 - É a voz de um homem. Ele está brigando com alguém. Quer que lhe dêem uma chance.

CONTEMPLADOR 2 - Como assim?

CONTEMPLADOR 1 - Não sei. Ele diz que precisa sair daqui, agora, que fez tudo por ela – agora sei, ele fala com uma mulher – e que ela devia, uma única vez , fazer algo por ele, é tudo que ele pede.

CONTEMPLADOR 2 - Por que ele quer ir embora?

CONTEMPLADOR 1 - Se deixasse a minha imaginação responder diria que ele está foragido da polícia, ele está acuado, já sabem que ele está aqui, ele precisa sair, é questão de tempo até o pegarem. Ele fala com sua namorada – ela está em outra cidade - precisa pegar o carro do pai e vir para cá, vir pela Dutra, precisa salvá-lo, vão capturá-lo, a polícia, e os homens da máfia, ele está devendo.

CONTEMPLADOR 2 - Isto é um local para você?

CONTEMPLADOR 1 - Sim. É onde toda a decadência se reúne, em uma narrativa característica, o chuveiro de metal de modelo pré-histórico, a corrente enferrujada que serve de cordinha para a privada, passam a ditar a história dos acontecimentos. Estou em algum lugar. Um lugar hostil.

CONTEMPLADOR 2 - Ele está falando.

CONTEMPLADOR 1 - Não o escuto, não entendo as palavras. A intenção é clara, forte. Ele está correndo perigo. A pessoa que está na linha também parece estar bem nervosa. Ele tenta falar baixo, para não chamar a atenção. Acho que neste fosso há apenas as nossas janelas.

CONTEMPLADOR 2 - Que horas são?

CONTEMPLADOR 1 - É tarde. Já passou da uma. Meus olhos estão um pouco inchados. Agora que não entendo mais o que diz a voz, sinto falta do som da TV. Se não a entendo é como se estivesse sozinho.

CONTEMPLADOR 2 - Termine este cigarro.

CONTEMPLADOR 1 - É verdade. O chão do banheiro está molhado. Ele fala com longas pausas, que parecem respiros. Tenho a impressão de que já não fala mais com uma mulher. Terá feito outra ligação? Fala com outras pessoas, está nervoso, ninguém o responde. Ele diz...

CONTEMPLADOR 2 - O que ele diz?

CONTEMPLADOR 1 - Aqui no meio, plástica, escura, opaca, destoa a porta do box. No amarelo, o box é o estranhamento.

CONTEMPLADOR 2 - Estás com frio.

CONTEMPLADOR 1 - Se eu for pegar minha blusa no quarto talvez não volte. Seguro os pensamentos e a respiração, estou escutando, até a brasa. Ele diz: “Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e você não pode uma única vez, uma única vez! Eu nunca te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única vez!”

CONTEMPLADOR 2 - Há algo de estranho na geografia do som?

CONTEMPLADOR 1 - Só um instante. Peraí. Não, é na história. O silêncio lá embaixo me impõe uma dupla camada de vazio, aqui. Vamos silenciar...

CONTEMPLADOR 2 - Enquanto você espera, eu digo, petulante, que minhas palavras são simultâneas a mim, talvez por isso eu não fale muito. Estou no colchão ao lado, ou no corredor, estou em casa tranquilo, tanto faz. Percebo um movimento depois que ele acontece. Quando quero dormir, durmo. Sua angústia é embarcar na narrativa, eu nunca desci deste navio.

CONTEMPLADOR 1 - Ele está falando, e você falando junto, sem necessidade.

CONTEMPLADOR 2 - Escute! Viva!

CONTEMPLADOR 1 - Misericórdia, cale a boca!

A VOZ(em off) - “Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e você não pode uma única vez, uma única vez! Eu nunca te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única vez!” (longo silêncio. O homem da voz pigarreia. Faz o som de "R" com a língua para aquecer a voz. Uma pausa)“Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e você não pode uma única vez, uma única vez! Eu nunca te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única vez!”

(pausa)

CONTEMPLADOR 2 - E agora, sabe onde estás?

CONTEMPLADOR 1 - Estou onde tudo um dia foi amarelado, onde os móveis de madeira, as manchas na parede, o cheiro forte de cigarro, fizeram parte do espaço e quase que de mim. Estou onde algo foi e tento agora estar assim, equivocado, onde os móveis de madeira, as manchas na parede, o cheiro forte de cigarro, se despem e sorriem.

CONTEMPLADOR 2 - Alguém bate na porta.

CONTEMPLADOR 1 - Atenda você.

C. P. F. - Caio Poeta Fariseu


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