04 novembro 2012

A água do chuveiro (ânsias vampirescas)

A água do chuveiro até que caia fria e o sol esmigalhado que perfurava a pele incandescente como se os poros se abrissem para absorver toda a quentura e liberar a energia pulverizada em suor. Ela saiu do banho trajando apenas uma toalha que ficava a meio-palmo do chão, um pouco acima de seus dedos mordiscantes dos pés alvejados pelos feixes de luz solar que escapavam em meio aos vorazes buraquinhos carcomidos da cortina vermelha que protege a vida privada privada privada dos narizes bocas e ouvidos que trafegam pelas ruas recalcadas e zombeteiras. A toalha subia até seus seios rebordosos e uma pele bem marronzinha, aquele pano meio sujo que só reposicionava o asco do cotidiano se preocupava em salientar os contornos de seu corpo ainda rijo embora a meia-idade. O homem que vivia lá já não jazia seu corpo (seus músculos e impaciência) pelo lar, mas a presença dele ainda fazia-se costurada em cada gesto receoso e esmerado da moça. Os momentos de tranqüilidade recostada na grade da pequena sacada do apartamento eram entrecortados por jorros sensitivos misturados entre a calma excitante que amortecia o ambiente e a espera não tão satisfeita pelo homem, o metido a provedor. A louça e as roupas por passar e o arroz e feijão esquentando nas panelas borbulhantes e escarnecidas traziam pensamentos vazios e inoxidáveis de amor e ânsia pela vida deflagrada em torres e calçadas e palavras de gozo e alegria, a cerveja e sua indubitável vontade de talvez largar tudo e... – até que a imagem chamuscada daquele homem enfadonho e empertigado de EMPREGO -, aquela miragem falha incomodava seu âmago e ela não tinha idéia do que fazer para melhorar a situação, ou mesmo como deixar aquilo tudo para trás. Tinha planos, de certa forma, mas não se projetava sobre eles com todo o vigor que imaginava ter. Não era bem a preguiça que a dominava... A uma quadra de seu prédio havia um bar. O condomínio em que ela vivia com aquele homem era composto de dois prédios, cada um com 12 andares, pintados recentemente de um verde-bosta horrendo, mas normal e nada ultrajante. Afinal, é bosta mesmo. As salas comunais já eram tomadas de uma ausência fantasmagórica de crianças e jovens querendo fazer alguma coisa, juntos ou não, fazer algo sossegado como conversar horas a fio pela madrugada sob tons inebriantes de cinza e verde e uma cor pastel que camufla a maioria das salas desse tipo pelo prédio e a inocência desfigurada de alguns dos jovens que passavam por ali. Isso, ou chamar um parceiro ou parceira e se esconder nos cantos do pretume da noite aonde a câmera de vigilância não consegue alcançar suas ânsias vampirescas e áureas. De qualquer forma, um prédio tranqüilo e normal, como a maioria dos prédios da região. Mas a mulher não ligava muito pra isso. Ela não passava seu tempo nesses salões. Ficava mesmo em casa ou na rua, particularmente dividia suas atividades entre as tarefas de casa e a mesa simpática do bar, que ficava a 200 metros da porta do prédio. Lá tinha amigos. Amigos dela e daquele homem, mas mais amigos dela mesmo, já que era ela quem sempre estava por ali. Além disso, não eram do tipo que insistiam em fazê-la recordar de seus afazeres domésticos e muito menos de algumas das surras que levava de seu homem. Ele passava o dia longe dela, no trabalho. Estranhamente era um homem que gostava de seu emprego como uma mula ama transportar o peso dos outros no agreste: vai levando, vai levando (ai, se Guimarães me ouvisse agora...). Ele tinha lá suas distrações, amigos e uma secretária ou outra que embrulhava sua mente até a próxima visita ao toalete, as janelas que miravam o centro da cidade... e o prédio do lado, onde haviam outras secretárias e executivas que colocavam o cérebro dele pra trabalhar, de verdade. O chefe mala mas inofensivo, sem que isso lhe impusesse qualquer perigo, quer dizer a covardia e calhordice do bundão que sentava na sala maior, mas com culhões que deixavam a desejar – diziam os boatos entre as secretárias e arrumadeiras do andar. E tudo isso se seguia na sua rotina de escritório, sem muito futuro ou vantagem pra ninguém, mal lembrando daquela que o espera em casa, ou como era mais freqüente, no bar! Só pensa nela quando entra no ônibus lotado e esbarra naquela gorda desagradável de sempre ou naquela amiga dela bonitinha que desce dois pontos antes dele. Quando se trombam no ônibus, a conversa é sempre agradável e eles até deixam um pouco de lado o fato de que tem um gordinho folgado e careca que fica encoxando ela nas curvas, largando-se contra ela. Vai ver é por isso: tem alguma coisa aí, nesse toque brusco e repentino, que provoca inércia e êxtase nos dois. Ela desce na sua parada e é como se nada tivesse acontecido, nunca aconteceu. E ele: para ele, só resta aquela dureza que perdura do momento em que ele encontra sua mulher no bar aos risos com o resto do mundo até o dia seguinte, na hora em que ele a deixa dormindo na cama se recuperando do porre e sai pela portaria do condomínio sorrateiramente. Essa mulher agora só se lembra do tempo em que já havia se apaixonado pelo seu HOMEM – se é que algum dia o tenha sido de fato apaixonada por este homem que pensa que ela é dele como um trocado encontrado na sarjeta de alguma avenida enluarada da cidade grande. Desses tempos, aliás, ela lembra mais de como era apaixonada cegamente pelo mundo e tudo o que ela queria fazer. Todos os outros homens com quem esteve, e agora estava presa com este único. Os trabalhos que teve e aqueles que deixou de ter; enfim, um momento longínquo e ávido no qual as coisas realmente existiam e aconteciam. Dias meses e anos nos quais as suas mãos olhos pernas e boceta não eram tão somente aparatos putrefatos e cansados de executar sempre e sempre as mesmas tarefas, os mesmos lixos e roupas amassadas e panelas queimadas e pintos gravitados em pura merda despercebida de sua pureza. Ela sentia falta de muuuitas coisas, menos do dia de hoje, e de ontem e do amanhã igual ao que foi o mesmo ontem. E hoje. Só conseguia encontrar algum conforto nas horas em que não estava em casa, desarrumada e sem sobressaltos. No bar, pelo menos se via diante de algo prestes a acontecer sem fazer alarde ou qualquer menção já calculada, como seu marido chegando e o repentino tilintar das chaves. Naquela mesa, gostava de observar tudo, sentir tudo, cheirar tudo, tocar (quase) tudo e opinar sobre o que quer que lhe atinasse os sentidos e as emoções. Os ex-maridos carniceiros das amigas, os garotos que também sempre aparecem por ali e gostam de sentar-se à mesa ao lado pra tirar um sarro e quem sabe puxar uma conversa bem interesseira, um flerte, dois e algumas mãos bobas pra se sentir ouriçada novamente, sem razão para temer nada, só o imprevisto de uma eventual ida ao banheiro e por um acaso bem acidental esbarrar com um dos garotos, jovens e complexados, querendo dizer alguma coisa mas nunca sabendo bem o que é essa coisa interdita e confusa e perplexa. Ela sabe, tem as palavras milimetradas na ponta da língua, guarda pra si a certeza de que sabe de alguma coisa que esses garotos não sabem, só que também as evita, e ainda não recorda bem o por quê disso.

Zé Daniel
Alavancado de Antes do sol acordar.

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