I
A
cidade corre como seu todos os dias, numa naturalidade que amedrontaria um
tanto aos olhares mais atentos. Como num balé, multidões inidentificáveis e
eternamente condenadas ao atraso, passeiam em suas sincronias às pressas, seus
engarrafamentos, afogamentos de superlotação no transporte público. Nos
estabelecimentos, onde a circulação intensa cede espaço ao salgado engordurado
e café, ou cerveja, ou pinga, ou refrigerante dietético, ou ainda nas
residências cansadas do longo dia, ou nos caminhos lotados dessas residências,
ou pelos bolsos em seus aparelhos digitais, chegam por telas eternamente acesas
as atualizações da beleza na cidade, as vidas das pessoas famosas da cidade, as
notícias da violência da própria cidade; em toda a cidade, chegam notícias da
cidade; aos belos e grandiosos, aos violentos e aos violentados, chegam
notícias dos famosos, da beleza e da violência na cidade. E a essas notícias, o
pânico. O pânico de frequentar a rua, fora da pressa sufocada das horas
comercias (há uma bolsa de investimento e especulação das horas mais lucrativas
dos dias); o pânico de desesperadamente encontrar uma semelhança entre si e a
beleza; o pânico de alguma forma fazer parte de sua grandiosidade. E a essas
notícias belas, grandiosas, famosas e violentas, e ao pânico, a boa justificativa
para mais violência, sobretudo essas notícias violentas, que emprestam à
violência os status de bela, famosa e grandiosa, e porque tudo que chega das
telas, se chega pelas telas, só pode ser uma versão purificada da verdade. E às
telas, tudo se refere, não só porque seja onipresente, mas principalmente, por
sua onisciência. Há câmeras por toda parte, seja na missão de flagrar e
deflagrar a violência, seja na missão de divulgar belezas, famas e grandiosos
costumes; todos estão sujeitos não só a receber as notícias da cidade, mas
principalmente a voluntariosamente, ceder novas notícias a seu panteão
vertiginoso e efêmero. A cidade soa assim plena em sua normalidade, onde cada
qual desfila seu cotidiano rotineiro, a certeza das câmeras para flagrar seus momentos
e das telas para divulga-los, com a aparência convertida em gesto, e
comprovando em seus gestos gravados, as verdades que gostaria de mostrar ao
mundo: pelas telas, a vida na cidade afirma sua verdade.
II
O
homem negro de terno entra sisudo no vagão; procura um assento e, olhando em
volta, se depara com um grupo das garotas em roupas mínimas, cabelos alisados e
gestos bastante expansivos. Ele que carrega um livro de capa de couro preta
embaixo dos braços, ao se deparar com as garotas, que o olham com certo
despeito, segura mais forte o livro e desloca seu olhar, atravessa as telas,
procurando assento do outro lado do vagão. Ao sentar percebe estar perto de um
casal homossexual; as telas captam o momento em que olha para as mãos dadas dos
dois homens e se surpreende. Já era tarde: não poderia voltar a se levantar,
sem levantar as suspeitas de quais eram suas razões; teria de lidar com a
presença imoral e a conduta antinatural daqueles sujeitos, e que diabos dos
infernos que esse mundo está perdido mesmo, se vê por esse vagão, que não tem
um canto sem sordidez. Da mesma forma, o casal homossexual percebe a presença
daquele homem negro de terno, logo a seu lado. Supõe: um preto de terno ou é
segurança ou é crente; mais uma vez as telas capturam a expressão de
curiosidade e desdém de seus rostos no momento exato em que ambos analisam o
homem de cima abaixo. Ao perceberem a convicção com que o homem negro de terno
se agarra ao seu livro de capa de couro preta, percebem de imediato: trata-se
se um fanático religioso ignorante e homofóbico, isso se não for um pastor
ladrão. As telas, então, formam um quadro de desconforto mútuo no primeiro
momento de viagem, que se desfaz numa cortina entre a cordialidade e a presença
tolerada.
No
entanto havia ainda outro empecilho de urbanidade a se levar em conta. Sabiam
da presença das câmeras. Não que houvesse alguma polícia ou coisa que o valha
para que lhes ordenar como deveriam agir. Aquele homem negro de terno agarrado
com afinco a seu livro de capa de couro preto era livre para agir segundo sua
própria disposição; no entanto, sabia, como todos os demais, que sua atitude
era acompanhada pelo olhar mecânico das câmeras e tida como exemplo diante das
telas; trata-se de afirmar para os seus, que fique claro, segundo sua atitude,
a coerência de sua fé: seu desafio era reprova-los, em seus gestos, com uma
sutileza que evitasse que essa reprovação pudesse servir de justificativa para
uma resposta por parte do casal homossexual. Da parte do casal homossexual ocorria
algo muito parecido: toda a indignação de uma comunidade deliberadamente
atacada de maneira atroz pelas as ultimas declarações de religiosos
obscurantistas, poderia estar acompanhando a situação, afinal era evidente que
aquele homem os mirava com todo o preconceito. Da mesma forma, não queriam se
rebaixar ao nível desses sujeitos ignorantes, bárbaros ofensivos contra os
direitos e a liberdade individual.
As
telas mostram o casal homossexual, de maneira altiva, trocando carícias leves.
Aquelas carícias tinham a representatividade de uma bandeira multicolorida, e
era esse o espírito de sua atitude: carregavam com carinhos, ora bolas, mesmo
que mais por raiva que por afeto, o orgulho de sua luta, numa batalha
silenciosa e ostensiva, num gesto que imaginava ter de um lado a sua comunidade
ofendida como plateia, e de outro, o escárnio descarado sobre o preconceito. As
telas mostram que a troca de carícias do casal homossexual gerava no homem
negro de terno um desconforto enorme: a cabeça fazia suaves gestos de negativa,
enquanto sua testa aos poucos ia minando suor, as mãos agarraram-se à ao livro
de capa de couro preto e sua respiração ofegante, ficava cada vez forte. É que
o homem internamente, ainda apenas diante si e de seu Deus, orava; orava
rogando ao espírito santo que livre aqueles dois homens do fogo do inferno pela
prática da sodomia, que os cure dessa prática doentia, e principalmente, que
livre a ele e aos seus daquele espetáculo pecaminoso que se apresentava em
pleno vagão e se difundia sabe Deus para onde e para as vistas de que crianças
inocentes por meio dessas telas.
A
respiração ofegante do homem negro de terno soava para o casal homossexual como
uma provocação, a declaração de seu incômodo diante de sua simples presença. As
telas mostram o casal homossexual entre carícias leves, observando o homem
negro de terno com suas negativas suaves com a cabeça, e os olhos fechados
enquanto ora. Então, um dos dois homens apoia-se sobre o colo do outro,
ostentando mais claramente nas telas sua posição de casal. O suor do homem
negro de terno aumenta drasticamente, tomando não só a sua testa em largas
gotas, como empapando sua camisa na região do peito; não era apenas o
constrangimento que lhe causara o suadouro, como pelo próprio clima quente, em
vapores que emanavam do vagão. Tanto era assim que mesmo o casal homossexual,
ao se manterem um no colo do outro começavam também a suar de maneira bastante
incômoda; no entanto, não se levantariam: sua posição tinha algo além do
simples conforto momentâneo; havia ali uma proposição política. E é bem verdade
também que não apenas o calor fazia com que o casal suasse, mas também o
nervosismo gerado pela expectativa da situação. Afinal, iria o homem negro de
terno, seu oponente ocasional, levar às últimas consequências a peleja? O homem
negro de terno ao perceber que o casal homossexual parecia muito mais à
vontade, inspirados pelo demônio, de certo, abriu seu livro de capa de couro
preto e começo também a orar de maneira ostensiva, repetindo as palavras do
livro como quem resmunga algo, em dizeres um tanto confusos, mas deixando claro
que estavam sendo ditos: um espetáculo de fé, e que fosse fonte de inspiração
para a moral de toda a cristandade que o acompanhava pelas telas, aquele homem,
que como um profeta, enfrentava com dizeres santos a provocação diabólica.
Estava
agora declarada guerra. Por um lado, um casal de homens um no colo do outro, e
por outro, um homem negro de terno lendo em voz alta e imperiosa e eis que hoje eu ponho diante de vós a
bênção e a maldição, ainda que de maneira confusa, seu livro sagrado de
capa de couro preto. O clima tenso estava declarado, e se notava espalhado mesmo
para o resto do vagão; eles se encaram os três, suando em bicas, e as telas
fixavam a imagem de um homem negro de terno pregando com mais eloquência que fé,
para um casal homossexual que, assistia ao discurso com um sobre o outro numa
certa ternura forçada.
À
medida que a tensão se torna evidente, o homem negro de terno aumenta seu tom
de voz em gestos cada vez maiores. Não só pelas telas se vê o embate de
convicções e modos de vida, como pelo resto do vagão, a situação ganha todo
foco; dada sua circunstância espetacular, nenhum dos lados abriria mão da
peleja. E quando o homem negro de terno já se encontra à beira dos berros, se não cumprires o mandamento do vosso
senhor, o casal homossexual dá um beijo enorme, quente, úmido, cheio de
línguas e suspiros.
Nesse
momento, o trem para na estação; dois meninos maltrapilhos, com umas camisetas
de candidato político, chinelos de dedo entre dedos pretos de sujeira, algumas
cicatrizes, e um acordeom que um deles carrega nos braços. Enquanto um começa a
tocar, o outro pede licença aos passageiros, que nós não queremos incomodar os
senhores, só mostrar um pouco do nosso trabalho e pedir sua ajuda que Deus os
abençoe. Todos se calam diante de sua singeleza; o vagão inteiro é tomado, não
pela pena desses pobres meninos pobres, precisamos mesmo dar uma colaboração de
bom grado, mas a música se alastra por todos os cantos como uma chama de outra
natureza; o beijo e a pregação se interrompem contemplativos daquela cena: um
toca, o outro canta e passa uma cuia para as moedas. A comoção no vagão era
tamanha que quase todos deram a sua contribuição, afinal mesmo que pouco, é de
coração e esses meninos bem merecem. As
telas mostram os meninos tocando e arrecadando moedas e sorrisos pelo vagão;
mostra o casal homossexual boquiaberto; mostra o homem negro de terno com os olhos
marejados: algo naqueles meninos lembrava a ele próprio, em suas meninezas, e
esse tipo de calor emocional, câmera nenhuma pode ser capaz de captar.
Então,
com os olhos ao ponto do pranto, o homem negro de terno retirou sua carteira
simples do bolso, esvazio-a por completo e depositou tudo na cuia dos meninos
maltrapilhos. O menino maltrapilho que carregava a cuia, ao ver a quantia que o
homem negro de terno depositava ali, agradeceu acaloradamente com um sorriso
largo como a plataforma e um abraço forte. As telas mostram o abraço, mas não teriam
condições de expressar o que se presenciava; mostravam o casal homossexual se
olhando diante do homem negro de terno.
Mais
uma vez o trem para na estação; e da estação, sobem seguranças da companhia de
trens que afinal, viram pelas telas e cena comovente e ilegal. Abruptos, tomam
a cuia dos meninos maltrapilhos, tomam seu acordeom e vão retirando do vagão as
crianças, que já não choram mais nessas situações. Um dos homens do casal
homossexual se levanta: esse é trabalho deles, seu troglodita, fascista! E o
segurança: esse é o meu. Trabalho inglório o dele, servicinho de merda; e esse
pensamento pairava sobre as cabeças de todos no vagão, com o trem partindo mais
uma vez da estação.
Então
o silêncio tomou o vagão; ouvia-se apenas o rangido metálico dos trilhos se
roçando junto do trem, enquanto todos pensavam naqueles meninos e tomara Deus,
não tenha lhes acontecido nada demais, apenas uma bronca e deixem, por favor,
eles irem com o dinheiro e o acordeom. O casal homossexual olhava para baixo,
ambos pensando nas lágrimas que hesitaram em cair por aquele rosto negro e
humilde, que deu sem pestanejar tudo o que tinha, e num gesto tão sincero e
espontâneo, tão diferente daquele discurso enfadonho e eloquente, coreografado,
que fazia antes a chegada dos meninos maltrapilhos. E o homem negro de terno
não voltou a olhar o casal homossexual, porque tinha vergonha de ver não o
demônio se levantando na tentativa de proteger as crianças, mas um humano dos
mais nobres, enraivecido diante de uma injustiça evidente, dando voz à vontade
de todos os presentes. Eles se admiravam; por um momento, quase quiseram trocar
sorrisos. Mas se viram nas telas, calados, com os olhares fugitivos uns dos
outros, e se lembraram de que eram ali representantes de algo que ia além deles
mesmo: o preconceito e a verdade que deveriam sustentar.
Não
se olharam, não oraram, não se acariciaram. Passaram o resto da viagem como desconhecidos,
os três. Num silêncio que era de uma devoção, de uma quietude toda dedicada a
suas presenças; um silêncio de homenagem velada.
Na
estação seguinte o casal homossexual desceu, sem olhar para trás. O trem
seguiu.
Jurandir Dente d'ouro.
Decálogo.
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