Que
buzina é essa que aponta longe? Será a Dutra? Aonde
estará a Dutra? Quanto dista daqui?. A buzina me intriga. É
instável, aqui o som dos carros não forma um ruído
uniforme. Não me sinto seguro na geografia do som. Quero me
localizar, não controlo o impulso de me localizar. As paredes
são amareladas, e ainda seriam amareladas sem esta luz
incandescente. Há uma uniformidade de tons. Amarelados. Do
chão de tacos, ao rodapé, um criado-mudo de madeira
escura, uma pequena mesa com uma cadeira de encosto alto e um
guarda-roupa, com uma única porta, todos de madeira, a colcha
das duas camas de solteiro. Amarelados. São amarelados pois
fazem parte deste espaço, onde há uma unidade. Este
amarelo os une. Sou a parte não-amarela deste quarto. A parte
que se move. Todo resto está unido contra mim. Não
falei da cortina. Está mais para laranja. Compõe com o
quarto. De forma transversal se cria uma ambientação. Desagradável. Também não falei da única
peça ornamental, a coroa do desenho, a reprodução
de uma xilogravura onde se vê uma igreja de estilo colonial e
uma pequena cidade. Há muitas assim. É um retrato
bucólico, isto é um lugar. Aqui nesta cidade me sinto
em lugar algum. Vou me sentir melhor quando dormir. São os sons. Com o tempo o amarelo entra em mim,
se ficasse mais um dia aqui já seria amarelo e estaria tudo
bem. Aceitaria talvez estas manchas da parede como minhas, não
iria ficar imaginando a história de cada uma. Mas com os sons
não posso. Preciso entender o que estou ouvindo. Preciso
encontrar este ritmo. São buzinas de caminhão, agora
tenho certeza, já sei até mesmo que passam com
intervalos de cinco a dez minutos, às vezes menos, e não
há como, me dá um sobressalto, sinto o caminhão
entrando pela janela, e parece que de nada adianta esta cortina
laranja. É tarde. Já passou da uma. Meus olhos estão
um pouco inchados. E tem isso. Não sei. É mais fácil
de escutar do banheiro pela janelinha, tento ficar do lado esquerdo
para que não possam me ver da janela do corredor. Pensei que
fosse para mim. Quando cheguei aqui parecia que todos os sons me
diziam respeito, aos poucos essa sensação foi passando.
Não sei. Não dá pra entender muito bem o que a
voz diz, tenho que me levantar na ponta dos pés, e virar o
ouvido para o vão da janelinha. Tenho medo de que a sombra da
minha cabeça apareça lá fora. No vão do
prédio. A voz parece irritada. Não escuto ninguém
lhe respondendo. Está falando no telefone. Acho que está
falando no telefone. Há um espaço entre uma frase e
outra. Um espaço no som. Definitivamente ela não fala
sobre mim. Se subo no degrau da porta do box, posso ficar mais alto,
escuto melhor. É uma discussão. Vou abaixar, vou
abaixar a TV, vou me abrir para este descampado baldio do som.
Pronto. As buzinas, o escapamento das motos. Pessoas longe, quase sem
relevo. O clique do meu isqueiro. Em intervalos a voz. Joguei uma
camada de silêncio sobre o prédio. Tenho medo que
escutem meu silêncio. Prestam atenção a você
todo o tempo. Estou construindo este espaço. A forma mais
fácil de me enxergar nele. Vivo em relação a
alguém. Sozinho não sei. O chão do banheiro é
feito de pedaços irregulares de azulejo vermelho-carmim. Há
a intenção de desenhar uma flor, acho, com pedaços
de azulejo amarelo, quatro pedaços para cada flor. Mas talvez
não sejam flores. Os azulejos da parede são brancos e
vão do chão até a altura de meus olhos. Uma
estreita faixa de azulejo azul divide a parede horizontalmente. Na
parte de cima não há azulejos. Ainda aqui há
algo amarelado, o chão do box é feito de ladrilhos
coloridos. É a voz de um homem. Ele está brigando com
alguém. Quer que lhe dêem uma chance. Não sei.
Ele diz que precisa sair daqui, agora, que fez tudo por ela – agora
sei, ele fala com uma mulher – e que ela devia, uma única
vez , fazer algo por ele, é tudo que ele pede. Não sei.
Eu diria que ele está foragido da polícia, ele está
acuado, já sabem que ele está aqui, ele precisa sair, é
questão de tempo até o pegarem. Ele fala com sua
namorada – ela está em outra cidade - precisa pegar o carro
do pai e vir para cá, vir pela Dutra, precisa salvá-lo,
vão capturá-lo, a polícia, e os homens da máfia,
todos eles, cautela, ele está devendo. Sim. É onde toda
a decadência se reúne, uma narrativa característica,
o chuveiro de metal de modelo pré-histórico, a corrente
enferrujada que serve de cordinha para a privada, o ritmo dos
acontecimentos. Estou em algum lugar. Um lugar hostil. Não o
escuto, não entendo as palavras. A intenção é
clara, forte. Ele está correndo perigo. A pessoa que está
na linha parece também estar nervosa. Ele tenta falar baixo,
para não chamar a atenção. Acho que neste fosso
há apenas as nossas janelas. Agora que não entendo mais
o que diz a voz, sinto falta do som da TV. Se não a entendo é
como se estivesse sozinho. O chão do banheiro está
molhado. Ele fala com longas pausas, que parecem respiros. Tenho a
impressão de que já não fala mais com uma
mulher. Terá feito outra ligação? Fala com
outras pessoas, está nervoso, ninguém o responde. No
meio, plástica, escura, opaca, destoa a porta do box. No
amarelo, o box é o estranhamento.
Se for pegar a blusa no quarto talvez não volte. Seguro os
pensamentos e a respiração, estou escutando, até
a brasa. Ele diz: “Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me
ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e
você não pode uma única vez, uma única
vez! Eu nunca te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única
vez!” Um instante. O silêncio lá embaixo me impõe
uma dupla camada de vazio, aqui. Vamos silenciar...
A
VOZ - “Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu
sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e você
não pode uma única vez, uma única vez! Eu nunca
te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única vez!”
(longo silêncio. Ele pigarreia. Aquece a voz. Modulando a
entonação)“Eu preciso sair daqui, agora! Você
vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você,
sempre, e você não pode...”
Sei
onde estou. Estou onde tudo um dia foi amarelado, onde os móveis
de madeira, as manchas na parede, o cheiro forte de cigarro, fizeram
parte do espaço e quase que de mim. Estou onde algo foi e
tento agora estar assim, equivocado, onde os móveis,
as manchas e o cheiro, despidos me sorriem. Alguém bate na
porta. E já nem me sinto mais sozinho.
C. P. F. - Caio Poeta Fariseu
Resulta de Caravelas.
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