CONTEMPLADOR
1 - Que buzina é essa que aponta longe? Será a Dutra?
Aonde estará a Dutra? Quanto dista daqui?
CONTEMPLADOR
2 - De que lhe vale este dado? Esteja.
CONTEMPLADOR
1 - Estou. Mas a buzina me intriga. É instável, o
som dos carros não forma um ruído uniforme aqui. Não
me sinto seguro na geografia do som.
CONTEMPLADOR
2 - Então não se sente seguro.
CONTEMPLADOR
1 - Quero me localizar, não controlo o impulso de me localizar.
CONTEMPLADOR
2 - Onde você está?
CONTEMPLADOR
1 - Em um quarto de hotel, no interior. As paredes são
amareladas, e ainda seriam amareladas sem esta luz incandescente. Há
uma uniformidade de tons, amarelados, do chão de
tacos, ao rodapé, um criado-mudo de madeira, uma pequena mesa
com uma cadeira de encosto alto, de madeira. Um guarda-roupa, com uma
única porta, a colcha das duas camas de solteiro.
CONTEMPLADOR
2 - O chão de tacos e os móveis de madeira são de
cor escura e não...
CONTEMPLADOR
1 - Amarelados. São amarelados pois fazem parte deste espaço,
onde há uma unidade. Este amarelo os une. Sou a parte
não-amarela deste quarto. A parte que se move. Todo resto está contra mim.
CONTEMPLADOR
2 - Apodere-se.
CONTEMPLADOR
1 - Não falei da cortina. Está mais para laranja. Compõe
com o quarto. Uma ambientação transversal. Deveras desagradável. Também
não falei da única peça ornamental, a coroa do
desenho, a reprodução de uma xilogravura onde se vê
uma igreja de estilo colonial e uma pequena cidade.
CONTEMPLADOR
2 - A cidade onde você está.
CONTEMPLADOR
1 - Não sei, há muitas assim. É um
retrato bucólico, isto é um lugar. Aqui nesta cidade me
sinto em lugar algum.
CONTEMPLADOR
2 - Mas você está em algum lugar.
CONTEMPLADOR
1 - Vou me sentir melhor quando dormir, para o sonho há sempre
volta.
CONTEMPLADOR
2 - Não está se esforçando. Está vendo
realmente as coisas? O que pergunta para o espaço? Por que não
espera a sua resposta?
CONTEMPLADOR
1 - São os sons. Com o tempo o amarelo entraria em mim, se dormisse
mais um dia aqui já seria amarelo e estaria tudo bem.
Aceitaria talvez estas manchas da parede como minhas, não iria
ficar imaginando a história de cada uma. Mas com os sons não
posso. Preciso entender o que estou ouvindo. Preciso encontrar este
ritmo. São buzinas de caminhão, agora tenho certeza, já
sei até mesmo que passam com intervalos de cinco a dez
minutos, às vezes menos, e não há como, me dá
um sobressalto, sinto o caminhão entrando pela janela, derrapando no meu colchão.
CONTEMPLADOR
2 - E a voz?
CONTEMPLADOR
1 - E tem isso. Não sei. É mais fácil de escutar
do banheiro pela janelinha, mas tento ficar do lado esquerdo para
que não possam me ver da janela do corredor.
CONTEMPLADOR
2 - O que ela diz?
CONTEMPLADOR
1 - Pensei que fosse para mim. Quando cheguei aqui parecia que todos os
sons me diziam respeito, aos poucos essa sensação foi
passando.
CONTEMPLADOR
2 - Você está encontrando a segurança...
CONTEMPLADOR
1 - Não sei. Não dá pra entender muito bem o que a
voz diz, tenho que me levantar na ponta dos pés, e virar o
ouvido para o vão da janelinha. Tenho medo de que a sombra da
minha cabeça apareça lá fora.
CONTEMPLADOR
2 - No vão do prédio?
CONTEMPLADOR
1 - No vão do prédio. A voz parece irritada. Não
escuto ninguém lhe respondendo. Está falando no
telefone. Acho que está falando no telefone. Há um
espaço entre uma frase e outra. Um espaço no som.
CONTEMPLADOR
2 - Você está procurando o alheamento. Componha.
CONTEMPLADOR
1 - Definitivamente ela não fala sobre mim. Se subo no degrau da
porta do box, posso ficar mais alto, escuto melhor. É uma
discussão.
CONTEMPLADOR
2 - Vai ouvir melhor se abaixar o volume da TV.
CONTEMPLADOR
1 - Vou abaixar, vamos ver este descampado do som.
Pronto. As buzinas, o escapamento das motos. Pessoas longe, quase sem
relevo. O clique do meu isqueiro. Em intervalos a voz. Joguei uma
camada de silêncio sobre o prédio. Tenho medo que
escutem meu silêncio.
CONTEMPLADOR
2 - Achas que prestam atenção em você todo o tempo.
CONTEMPLADOR
1 - Estou construindo este espaço. É a forma mais fácil
de me enxergar nele.
CONTEMPLADOR
2 - Sendo algo para os outros?
CONTEMPLADOR
1 - Vivo em relação a alguém.
CONTEMPLADOR
2 - Você está sozinho.
CONTEMPLADOR
1 - Sozinho não sei ser.
CONTEMPLADOR
2 - Este quarto existe para além de você, lembra-se? As
manchas na parede não são suas.
CONTEMPLADOR
1 - O chão do banheiro é feito de pedaços
irregulares de azulejo vermelho-carmim. Há a intenção
de desenhar uma flor, acho, com pedaços de azulejo amarelo,
quatro pedaços para cada flor. Mas talvez não sejam
flores. Os azulejos da parede são brancos e vão do chão
até a altura de meus olhos. Uma estreita faixa de azulejo azul
divide a parede horizontalmente. Na parte superior a essa faixa não há
azulejos. Ainda aqui há algo amarelado, o chão do box é
feito de ladrilhos coloridos.
CONTEMPLADOR
2 - Escute.
CONTEMPLADOR
1 - Pensei que vir para cá fosse como entrar no mato, nesta cidade
piso em falso.
CONTEMPLADOR
2 - Escute a voz.
CONTEMPLADOR
1 - É a voz de um homem. Ele está brigando com alguém.
Quer que lhe dêem uma chance.
CONTEMPLADOR
2 - Como assim?
CONTEMPLADOR
1 - Não sei. Ele diz que precisa sair daqui, agora, que fez tudo
por ela – agora sei, ele fala com uma mulher – e que ela devia,
uma única vez , fazer algo por ele, é tudo que ele
pede.
CONTEMPLADOR
2 - Por que ele quer ir embora?
CONTEMPLADOR
1 - Se deixasse a minha imaginação responder diria que
ele está foragido da polícia, ele está acuado,
já sabem que ele está aqui, ele precisa sair, é
questão de tempo até o pegarem. Ele fala com sua
namorada – ela está em outra cidade - precisa pegar o carro
do pai e vir para cá, vir pela Dutra, precisa salvá-lo,
vão capturá-lo, a polícia, e os homens da máfia,
ele está devendo.
CONTEMPLADOR
2 - Isto é um local para você?
CONTEMPLADOR
1 - Sim. É onde toda a decadência se reúne, em uma
narrativa característica, o chuveiro de metal de modelo
pré-histórico, a corrente enferrujada que serve de
cordinha para a privada, passam a ditar a história dos acontecimentos.
Estou em algum lugar. Um lugar hostil.
CONTEMPLADOR
2 - Ele está falando.
CONTEMPLADOR
1 - Não o escuto, não entendo as palavras. A intenção
é clara, forte. Ele está correndo perigo. A pessoa que
está na linha também parece estar bem nervosa. Ele
tenta falar baixo, para não chamar a atenção.
Acho que neste fosso há apenas as nossas janelas.
CONTEMPLADOR
2 - Que horas são?
CONTEMPLADOR
1 - É tarde. Já passou da uma. Meus olhos estão um
pouco inchados. Agora que não entendo mais o que diz a voz,
sinto falta do som da TV. Se não a entendo é como se
estivesse sozinho.
CONTEMPLADOR
2 - Termine este cigarro.
CONTEMPLADOR
1 - É verdade. O chão do banheiro
está molhado. Ele fala com longas pausas, que parecem
respiros. Tenho a impressão de que já não fala
mais com uma mulher. Terá feito outra ligação?
Fala com outras pessoas, está nervoso, ninguém o
responde. Ele diz...
CONTEMPLADOR
2 - O que ele diz?
CONTEMPLADOR
1 - Aqui no meio, plástica, escura, opaca, destoa a porta do box. No amarelo, o box é o estranhamento.
CONTEMPLADOR
2 - Estás com frio.
CONTEMPLADOR
1 - Se eu for pegar minha blusa no quarto talvez não volte.
Seguro os pensamentos e a respiração, estou escutando,
até a brasa. Ele diz: “Eu preciso sair daqui, agora! Você
vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz tudo por você,
sempre, e você não pode uma única vez, uma única
vez! Eu nunca te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única
vez!”
CONTEMPLADOR
2 - Há algo de estranho na geografia do som?
CONTEMPLADOR
1 - Só um instante. Peraí. Não, é na
história. O silêncio lá embaixo me impõe
uma dupla camada de vazio, aqui. Vamos silenciar...
CONTEMPLADOR
2 - Enquanto você espera, eu digo, petulante, que minhas palavras são
simultâneas a mim, talvez por isso eu não fale muito.
Estou no colchão ao lado, ou no corredor, estou em casa
tranquilo, tanto faz. Percebo um movimento depois que ele acontece.
Quando quero dormir, durmo. Sua angústia é embarcar na
narrativa, eu nunca desci deste navio.
CONTEMPLADOR
1 - Ele está falando, e você falando junto, sem
necessidade.
CONTEMPLADOR
2 - Escute! Viva!
CONTEMPLADOR
1 - Misericórdia, cale a boca!
A
VOZ(em off) - “Eu preciso sair daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu
sempre, todas as vezes fiz tudo por você, sempre, e você
não pode uma única vez, uma única vez! Eu nunca
te pedi nada, você tem que fazer isso, uma única vez!”
(longo silêncio. O homem da voz pigarreia. Faz o som de "R" com a língua para aquecer a voz. Uma pausa)“Eu preciso sair
daqui, agora! Você vai me ajudar. Eu sempre, todas as vezes fiz
tudo por você, sempre, e você não pode uma única
vez, uma única vez! Eu nunca te pedi nada, você tem que
fazer isso, uma única vez!”
(pausa)
CONTEMPLADOR
2 - E agora, sabe onde estás?
CONTEMPLADOR
1 - Estou onde tudo um dia foi amarelado, onde os móveis de
madeira, as manchas na parede, o cheiro forte de cigarro, fizeram
parte do espaço e quase que de mim. Estou onde algo foi e
tento agora estar assim, equivocado, onde os móveis de madeira,
as manchas na parede, o cheiro forte de cigarro, se despem e sorriem.
CONTEMPLADOR
2 - Alguém bate na porta.
CONTEMPLADOR
1 - Atenda você.
C. P. F. - Caio Poeta Fariseu
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