Hoje
o Edmilson acordou sabendo que algo ia mudar. Vamos tratá-lo por Ed,
pois assim ele prefere. Essas duas letras trazem mais intimidade e
descaracteriza a origem humilde de seu nome, como ele mesmo diz.
“Algo
vai mudar”, foi o que disse. “Disse” como maneira de dizer,
disse para si mesmo internamente. Digo disse, pois é mais próximo
do acontecido do que se eu tivesse dito “pensou”.
O
sol ainda não tinha saído, não eram nem seis horas, mas ele já
estava se preparando para a viagem rumo ao seu trabalho, cheio de
dizeres internos de mudança.
Pegou
o ônibus às 6h10, sempre pontual para o seu percurso diário de uma
hora e quarenta minutos de duração. Cartão sempre batido às 8hs
em ponto, “pontualidade britânica”, era o que dizia, sem saber
muito o que isso significava.
No
meio do trajeto tomou uma decisão, logo ele que não possuía muita
experiência em decisões. Ficou feliz pelo momento único de sua
vida. Agora que tomara a decisão sentia ter controle de algo, apesar
de não saber do quê.
Desceu
do ônibus no ponto seguinte e em menos de cinco minutos descobrira a
complexidade das decisões. Decidira descer do ônibus e agora que
desceu se sentiu forçado a tomar outra decisão. Sentiu uma profunda
angústia, pois tinha deduzido que uma decisão puxa a outra e agora
que havia tomado uma decisão, ficou na dúvida se havia feito a
coisa certa. Não sabia se queria passar o resto de sua vida tomando
decisões. O ônibus partiu, era tarde. Ed havia se tornado um
decididor. Ele respirou fundo e disse internamente para si mesmo que
se tornar coisas fazia parte das mudanças.
Tomou
outra decisão, caminhar sem rumo, sem saber para onde e o porquê.
Caminhar para ver, para olhar o mundo. Ganhou mais um título que
nunca havia possuído, sequer soubera da existência. Agora era um
decididor-caminhante-visionário.
Olhou
para o mundo com o olhar virgem de alguém que nunca tinha visto
antes. Caminhou por lugares que suas pernas não-caminhantes nunca
usufruíram. Não fez outra coisa nas próximas horas, era todo
caminhar e ver.
Sentiu
fome, sentou na calçada e abriu a sua marmita de arroz, feijão e
bife. Comeu fria. Na verdade, após algumas horas dentro da mochila,
debaixo de trinta e quatro graus, seria mais próximo da realidade
arredondar a temperatura da sua comida para quente.
Tomou
outra decisão, comer e sentir o gosto da comida. Sentiu. Sentiu o
gosto, sentiu o bafo quente de um dia de verão, sentiu suas pernas
latejarem, sentiu as cores dos anúncios publicitários, sentiu os
sons, sentiu a cidade. Agora também era um sentimentalista.
Voltou
a exercer sua função de caminhante visionário, porém, com a
sofisticada habilidade de sentir. Caminhava sem rumo, cheio de
dizeres internos para si mesmo. Tentava explicar para si o que eram
essas mudanças. Sentia vontade de racionalizar aquilo, de
transformar em palavras-pensamento o que via com os olhos, decidia
com a intuição, caminhava com as pernas e sentia com a alma.
Tornou-se um racionalista.
Parecia
um jogo. Agora tudo tentava transformar em palavras-pensamento, as
cores das luzes do semáforo, a sensação quente dos raios de sol na
sua pele, os ruídos dos automóveis, o movimento das folhas das
árvores, o não-movimento dos prédios, as pessoas. Parou nas
pessoas. Como racionalizar as pessoas? Começou um novo jogo: olhar
para uma pessoa e imaginar a vida dela até aquele exato momento. Era
um imaginador agora.
Imaginou
centenas de vidas, centenas de histórias, centenas de mudanças.
Parou nas pessoas, esbarrou nas vidas. Sentiu vontade de voltar para
casa e assim o fez. Imaginar vidas foi mais exaustivo do que havia
suposto, algo pesado. Pesado por dentro, pois comparava as vidas
imaginadas com a dele próprio.
Chegando
em casa, todos estavam preocupados. Ligaram do trabalho. “Onde você
estava?” Ele ensaiou contar o que havia acontecido, mas parou. Viu
aquelas pessoas com seu novo olhar visionário. Sentiu aquelas
pessoas como um sentimentalista. Caminhou em volta delas, caminhante
que era. Imaginou não a vida que tiveram até ali, pois dessa já
sabia, imaginou a vida que poderiam ter tido. Racionalizou. Tomou a
última decisão do dia: dar uma desculpa qualquer e ir dormir, mesmo
porque, no dia seguinte acordaria antes do sol.
Leonardo Palma
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