Como uma cor por
ser nublado se ultrapassa? E o calçamento fustigado em
desnível envidraça – faz a proporção do
vertical, e sua cor? E toda fresta ou fossa escavada na massa pela
água, sobre si a manta reflexa d'água deita. E toda
beira da pista se encharca e desliza translúcida portadora. E
cada palmo de céu que se avista entre topos e toldos, se
encosta duro à retina, mão gelada do tempo que
abençoa a face da filha pia. Bons votos de prosperidade cedem
sobre as irredutíveis
figuras das calçadas molhadas, perpendiculares para sempre! De
passos acentuados, duvidando a firmeza do eterno vínculo,
afundam no chão impassível a planta nervosa e avançam
seguros, ariscos.
Aqui para sempre
essa cor e essa luz são estrangeiras. Pois aqui a fuligem
recobre o asfalto onde é via (sempre há via). Ela emoldura,
acompanha. Toda fachada através da parceira se acinzenta. O
chão vive dentro e fora. Carbônica, a névoa
paira...
Mas se nesta terra
o mundo encontra outro seu estranho, e outro seu colega, e cada um
dos passageiros cansados, a cor e a luz de cada um deles, sua coleção
de matizes, então
a composição deste outro espaço, o reflexo caído
em viagem, essa temperatura dos pés, as nuances da rua e esta
ausência no ar podem aqui, sim, ter lugar. Um mundo de cada
vez.
Um plano: planar. A leveza é muito mais suscetível a se
arrebatar. O ambiente, as esquinas do bairro de postes pintados, e
descascadas pinturas, manchas escuras de cima para baixo já
que a água cai.
Colado ao meio-fio
o banco de madeira não obstruía mas adornava, assim
como o bêbado, um pai, que sentado, com a cabeça descida
sobre o peito, ressonava. Ao lado da mãe, de pé, a filha
levava no rosto uma expressão crispada, sarcástica,
sentida. Sem aviso pisoteia, dá um grito. Se agarra à
gola da camisa do bêbado:
Acorda pai!
A cabeça
pensa tende a direita, a esquerda, gira no eixo do
pescoço e pousa no mesmo lugar.
Ela olha para mim.
Para mim os olhos limpos e a dor não disfarçada, o
olhar de fundo vermelho, a ironia dos lábios. Dissimula,
exorciza. Me aquece em um ponto, e para isso se faz toda
flama. Detenho-me: O leve, vê o vivo. Arremete:
Acorda pai!
E a estocada
estridente e esganiçada do som desenha o chicote do braço
curto sobre a face do homem que dorme. A agressão repete, multiplica.
Uma cabeça
que parece negar obstinadamente sacode-se indefesa, inconsciente. A
menina, em tensão, agarra-lhe cabelos e orelha, castiga,
pequenas unhas agitadas ferindo.
Meu calcanhar
gelado não entende meu peito reteso. A chuva cai, me umedece. Para a menina a chuva passa despercebida. Algo emana de sua espinha vertebral, uma fonte
térmica. Em sua base floresce a húbris a quem o vento e a chuva rendem respeito. Desta
espinha inflamada se cria um universo que sobre o pai tomba. Retumba:
Acorda pai!
Vindo pela calçada
em sentido oposto ao meu, um guarda-chuva de azul esmaecido diminui o
passo, observa. Sob ele uma mulher se revela, seu olhar nada indaga. É feriado.
Na pizzaria em
frente um entregador incentiva, seu abrigo impermeável
reflete, o capacete na mão gesticula.
Dá nele!
Por um momento o homem abre os olhos e fixa. Fixa, embora a direção da visão
escorregue. Só pode fixar, para onde olha vê
completamente, através. Apoiando o peso da cabeça no
ombro, encara a filha à sua frente, sua pequena ânsia,
seus olhos em brasa, límpidos, o despeito. Tenciona por as
coisas no lugar, dizer que se cale, defender-se, atacar. Maldizê-la... mas embarga, e quando a
água desfaz sua vontade, a vista nublada chama e a cabeça
cede.
Em desespero a
menina esperneia e repetidas vezes golpeia a face do pai. Com os solavancos a cabeça solta, inerte, se precipita para um lado e
depois rapidamente para o outro, atingindo um poste ao lado do
banco.
Pára
Natália, cuidado!
Intervêm a
voz distante da mãe, sem autoridade. O chamado não
surte efeito. A menina me destina um novo olhar de ódio e
espanto, o mesmo para a mulher do guarda-chuva azul. Suas mãos
em frenesi passam dos tapas a um movimento de pinça que
arranha a princípio, mas quer esmagar. Sob a cabeça essas
mãos encontram o pescoço do bêbado que volta sua face para o céu se encontrando com a luz.
Um grito: uma
ordem.
Paralisa a mãe, à mim, à mulher do olhar desinteressado. Aborta qualquer esboço de reação, nos impõe a condição de assistência.
Paralisa a mãe, à mim, à mulher do olhar desinteressado. Aborta qualquer esboço de reação, nos impõe a condição de assistência.
“Perceba
leve, ainda voa?”.
As gotas de chuva
que caindo protegem e abrigam o furor da menina - seu calor limpo –
estalam no rosto do pai, corado de bebida, de frio, de falta de ar.
Os dedos finos comprimem sua traqueia.
Pai!
Pesados, úmidos
e ainda cerrados como fendas, os olhos do ébrio se abrem. Um
olhar terno, primeiro. O reflexo. Um raio do branco do céu
se liga à testa do homem, seus olhos se arregalam. Vejo o branco explodir, escorrer por sobre as marquises, se espaçar entre as casas. Vejo o branco que aos poucos foge para dentro de mim Seu braço desaba
sobre a filha, pesado. Muito próximo, soa um trovão.
Sentado ele apóia a cabeça entre as mãos, com os nós dos dedos desfere um golpe na própria nuca. Resmunga.
No chão,
uma mão pequena no rosto aplaca a dor, contêm
um nariz que sangra. A mochila azul aberta, deixa escapar
encadernações escolares. Prostrada, ela me
dirige um último olhar. Não é um pedido de
ajuda. Não é um pedido de desculpas. Com a vida entre
os dentes, me arremessa um riso ácido, vulgar. Agachada, a mãe recolhe seus lápis de cor,
Quanto peso
carregar planador?
-Levanto vôo
com um mundo nas costas, lá no alto, o mundo todo voa comigo,
e já não preciso do chão.
C. P. F. - Caio Poeta Fariseu
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